Mais um aniversário que não pode ser esquecido. Mais um aniversário que preferiríamos não comemorar. Agora, eternizado em livro. Um livro que não pode faltar nas bibliotecas, nas escolas, nas casas e nos gabinetes dos três poderes, em todas as instâncias – municipal, estadual ou federal.
Chega às livrarias a história de mais um entre os imensos desastres socioambientais que vêm assolando biomas e vidas no Brasil. Dentro dela, estão emaranhadas também outras histórias. Mais antigas, mais complexas, mais profundas. Que também devem ser explicadas, conversadas e debatidas. Por todos.
Em fevereiro de 2023, 65 pessoas morreram no litoral norte de São Paulo arrastadas e soterradas por deslizamentos de encostas causados por um grande volume de chuvas. O bairro Vila Sahy, no sul do município de São Sebastião, foi o mais atingido.
Uma parte da população com imóveis na região, os moradores dos morros da Serra do Mar, do lado esquerdo da rodovia Rio-Santos, para quem vai de São Paulo em direção ao Rio de Janeiro, perdeu casas, vidas e sonhos.
A Vila Sahy, que fica entre as praias da Baleia e Juquehy, começou a ser ocupada na década de 1990 por imigrantes que vieram da Bahia e de outros Estados do Nordeste em busca de oportunidades de trabalho.
As famílias que moram ali trabalham em casas particulares, condomínios de luxo e hotéis que ficam à beira-mar, na praia Barra do Sahy, do outro lado da estrada. Uma linha concreta que separa ricos e pobres e a partir da qual se observam todos os efeitos da desigualdade social.
Sebastião, escrito por Claudio Fragata e Janaína de Figueiredo, ilustrado por Rodrigo Mafra e publicado pela Aletria Editora, conta tudo. O título do livro e nome do município que foi palco da tragédia é também o nome do narrador da obra. Um menino que teve a “sorte” de escapar do monstro de lama com a família e que hoje, abrigado em uma escola do bairro, se questiona sobre o futuro.
Com muita fluidez, ele explica a origem caiçara de seus parentes, descendentes dos povos indígenas e africanos que moravam no litoral. Conta de onde veio a população atual, porque foi aumentando gradativamente e como influenciou a cultura e as tradições. Seu pai é jardineiro do lado de lá da estrada, a primeira geração a não seguir a profissão de seu avô, pescador aposentado, que hoje tece redes para outros homens do mar.
O garoto vê com muita nitidez as desigualdades entre os dois grupos que frequentam aquela área. Discorre sobre elas ao mesmo tempo em que procura elaborar o choque, o susto com a tragédia e a incerteza do presente e do futuro.
As ilustrações de Rodrigo são perturbadoras. Com um estilo marcante, retratam o colorido e a exuberância da vida à beira-mar e da Mata Atlântica – como se pintadas sobre madeira. Ao relatar a tragédia, chacoalham e atropelam o leitor, embaralhando o que nossos olhos veem. São figuras desmembradas, em uma inclinação angustiante, que procuram nos transportar ao cenário inimaginável e insuportável de casas, famílias e histórias despedaçadas.
Janaína de Figueiredo é caiçara, moradora de São Sebastião, e viveu de muito perto a tragédia do ano passado. Antropóloga, escritora e educadora, trabalha na Secretaria Municipal de Educação, que organizou os abrigos nas escolas. Acompanhou a rotina de crianças e de suas famílias após o desastre. Testemunhou conversas, brincadeiras, choros, rostos inexpressivos do depois. A experiência foi compartilhada com Claudio Fragata e o livro nasceu.
Sebastião é para qualquer pessoa que se interesse pelo Brasil, pela sua história, pela ocupação do território, pelas relações de poder, pelos rumos da política e da economia e seus impactos na vida da população. Quem viveu a tragédia em São Sebastião não esquecerá. Essencial, porém, que quem viu de longe também não se esqueça. Especialmente em ano eleitoral.
Com as crianças, são muitas as questões a explorar. Cada página do livro é um capítulo cheio de perguntas, prontas para se conectar com o que aprendem na escola, com o que vêem nas ruas e em casa.
Quem viveu aqui antes da gente? Como era? O que mudou? Por que? Por que quem trabalha para os ricos é pobre? Por que a população do Nordeste e de outros estados precisou sair de suas terras para trabalhar longe? O que um hotel na beira da praia tem a ver com sustentabilidade? Quando e como uma criança se torna adulta? O que é começar do zero?
Por fim, é um livro sobre resiliência. Uma característica importante para seguir em frente, para superar dificuldades, para impulsionar as novas gerações e também para preservar a memória. Porém, não deve ser romantizada, muito menos considerada suficiente. Sob as camadas de resiliência, estão os escombros e muita dor.