
O termo powershoring já está nos dicionários relativos à transição energética como a realocação da produção industrial para países com fontes renováveis de energia abundantes e de baixo custo.
Afinal, à medida que os setores produtivos buscam descarbonizar suas operações e as tensões geopolíticas exigem a reestruturação de cadeias de suprimento consolidadas, a energia limpa torna-se cada vez mais uma infraestrutura estratégica — redefinindo onde a produção ocorre e quais países têm mais a ganhar.
Ao mesmo tempo, a crescente pressão por conformidade ambiental, especialmente por meio de mecanismos de precificação de carbono, reforça a competitividade de pólos industriais mais limpos, que se tornam mais atrativos para ancorar novos empreendimentos produtivos.
As condições particulares do Brasil comprovam, no entanto, que o conceito tem de ganhar maior abrangência. O país conta com uma das matrizes elétricas mais limpas do mundo, com geração de energia proveniente de fontes renováveis e de baixas emissões de carbono como hidráulica, eólica, solar e biomassa, mas sua contribuição em favor da transição energética global vai muito além do “power”.
As possibilidades e o aproveitamento energético do carbono biogênico amplamente disponível têm garantido que a nossa matriz energética como um todo também se destaque em relação à média global.
Com ampla experiência no mercado de biocombustíveis, o país não só é referência em termos de fabricação e consumo de etanol e biodiesel: tem potencial tecnológico e para a produção dos biocombustíveis sustentáveis de nova geração, voltados à aviação e à navegação internacional, por exemplo.
Também podemos avançar muito no que diz respeito aos gases combustíveis. A produção e o consumo de biogás e biometano são crescentes no interior do país, com o aproveitamento de resíduos urbanos e das atividades agropecuárias.
Ao mesmo tempo, esse potencial produtivo já começa a servir de base para tecnologias mais avançadas, como o hidrogênio produzido com baixas emissões. Combinados ou não, esses energéticos têm a capacidade de substituir, ainda que parcialmente, o gás natural em operações industriais; o hidrogênio também pode ser direcionado, como matéria-prima, para a fabricação de fertilizantes.
Não se pode esquecer ainda do potencial de produção de carvão vegetal sustentável. Embora o segmento ainda enfrente desafios socioambientais importantes, trata-se de alternativa para combinar a restauração de áreas degradadas no campo e a descarbonização de indústrias siderúrgicas e metalúrgicas, entre outras.
Além disso, importantíssimo ressaltar que powershoring vai muito além de power e poderia ganhar múltiplas denominações, como climateshoring, jobsharing, valuesharing ou co-manufacturing, sempre com foco da definição dos destinos da produção global com base nos elementos da transição energética justa.
Ou seja, alternativas que aproveitem o potencial de os países contribuírem com a descarbonização da produção, bem como em melhorias na distribuição de riquezas e empregos no mundo.
Nesse sentido, há outros atores do Sul Global não tão ricos em fontes renováveis, mas ricos em outros atributos essenciais à economia verde. Nesses casos, o adensamento de cadeias produtivas em torno desses insumos pode contribuir com a redução de emissões das mais diversas formas, seja por minimizá-las nos sistemas de transporte internacional, otimizar custos verdes, e auxiliar na melhor distribuição de valor e riqueza, acelerando a adesão à agenda verde, seja por razões geopolíticas de resiliência e diversificação.
Como exemplo, citamos um país rico em minério de ferro com pureza da ordem de 50%: ao exportar uma tonelada de minério, metade da carga é inútil ao processo. Portanto, fica muito mais eficiente em termos ambientais e econômicos beneficiar o minério in loco e colocar no navio somente o material que realmente importa.
A posição qualificada do Brasil em relação ao powershoring – ou a qualquer uma de suas definições – remonta ainda às demais características do termo: o país está particularmente bem-posicionado em termos de reservas de minerais fundamentais para a transição – como grafite, silício e lítio –; conta com uma base industrial consolidada em áreas como celulose, aço, alumínio e aeroespacial; e infraestrutura, sistema financeiro, pesquisa acadêmica e mão-de-obra qualificados.
Por fim, a relevância do Brasil para protagonizar a ancoragem do desenvolvimento verde e a importância do conceito para a descarbonização global não eximem o país de desafios que vão muito além da semântica.
São necessários a criação e o aperfeiçoamento de políticas públicas relativas à energia limpa e à indústria que intencionalmente coloquem o powershoring, o adensamento de cadeias produtivas e a conquista de novos mercados internacionais para produtos fabricados com baixas emissões de carbono como estratégia de implementação da transição.
Essa estratégia pressupõe ainda o convencimento do resto do mundo de que nossas potencialidades fazem sentido em termos técnicos, econômicos e ambientais. Afinal, podemos sustentar parte importante da transição para uma economia de baixo carbono.
* Rosana Santos é diretora-executiva do Instituto E+ Transição Energética