OPINIÃO

Por que o recuo anticorrupção de Trump pode ser um tiro no pé

Afrouxar controles pode gerar desconfiança no mercado global e levar investidores e consumidores a optarem por parceiros de países com políticas anticorrupção mais rigorosas

Mala de dinheiro

A Casa Branca divulgou uma nova orientação para reavaliar a aplicação do Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), lei de 1977 que combate o suborno a autoridades estrangeiras. Ao invés de revogar ou alterar a redação da lei, o governo Trump pretende “pausar” ou “reorientar” a fiscalização, redirecionando recursos para o que considera prioridades estratégicas, com a ideia de que a vantagem competitiva é um elemento de segurança nacional a ser assegurado.

A decisão se justifica com a necessidade de fortalecer a competitividade de empresas norte-americanas em mercados internacionais, garantindo “vantagens comerciais estratégicas” para setores como infraestrutura, minerais críticos e defesa. Paralelamente, um memorando intitulado “Eliminação Total dos Cartéis e Organizações Criminosas Transnacionais” foi emitido para o Departamento de Justiça (DOJ). Baseado na Ordem Executiva 14157, assinada em 20 de janeiro de 2025, o documento visa reduzir riscos legais e de conformidade para empresas em regiões com forte atuação de grupos considerados como organizações criminosas.

A ordem orienta que o Departamento de Estado, em parceria com outras agências, designe determinados cartéis como Organizações Terroristas Estrangeiras (FTOs) ou Terroristas Globais Especialmente Designados (SDGTs). Isso pode acarretar responsabilidade criminal e civil para empresas que forneçam “apoio material” a esses grupos.

Além disso, os procuradores dos EUA terão uma postura mais proativa contra investigações de suborno estrangeiro e lavagem de dinheiro, priorizando casos ligados a tráfico de pessoas, narcóticos e armas. As medidas terão vigência de 90 dias, podendo ser renovadas ou tornadas permanentes.

Segundo o documento, casos que não envolvam essa conexão – como suborno para facilitar tráfico de pessoas, narcóticos e armas – terão menor atenção. O memorando suspende determinadas exigências do Justice Manual para esses casos, permitindo que as procuradorias regionais (U.S. Attorney’s Offices) atuem com maior autonomia, desde que notifiquem a Unidade do FCPA com 24 horas de antecedência sobre a intenção de apresentar acusações.

Um pilar histórico anticorrupção

O FCPA foi criado em 1977 após escândalos envolvendo pagamentos ilícitos de grandes corporações a agentes públicos estrangeiros. A lei não só criminalizou o suborno no exterior como também estabeleceu regras rigorosas de contabilidade e governança, exigindo transparência nos registros financeiros e na tomada de decisões. Ao longo dos anos, o Departamento de Justiça (DoJ) e a Securities and Exchange Commission (SEC, comparável a Comissão de Valores Mobiliários no Brasil) fecharam acordos bilionários com empresas como Siemens (US$ 1,6 bilhão em 2008), Odebrecht (até US$ 2,6 bilhões em 2016), Rolls-Royce (cerca de US$ 800 milhões em 2017) e Airbus (aproximadamente US$ 3,9 bilhões em 2020), além de terem investido intensamente na capacitação de reguladores mundo afora como polícias, controladorias públicas e promotorias.

De acordo com a Casa Branca, a aplicação do FCPA tem “inibido a busca por contratos internacionais” e prejudicado a economia americana, ao impor altos custos de compliance e riscos de sanções. A nova política permitiria que as empresas competissem de igual para igual com concorrentes de países onde práticas de suborno são mais comuns ou menos fiscalizadas.

Contudo, esse argumento enfrenta resistência, pois quase 190 países já ratificaram a Convenção da ONU contra a Corrupção (UNCAC) e contam com legislações rigorosas, como o UK Bribery Act 2010 e a Lei nº 12.846/2013 (Brasil). Portanto, pode ser bastante questionável que haja um salvo-conduto a práticas de atos corruptos pelo mundo, já que a legislação americana não é o único instrumento disponível, ainda que tenha inspirado legislações semelhantes e a cooperação entre autoridades de diferentes países. Investigações conjuntas e acordos multilaterais ampliaram o alcance das apurações mas há receio justificado de que a cooperação internacional e a dissuasão contra a corrupção em outras áreas sejam prejudicadas.

Além disso, a flexibilização do enforcement pode, ao contrário dos interesses divulgados, afetar negativamente a competitividade e a reputação das empresas dos EUA bem como suas subsidiárias, parceiros comerciais e fornecedores. Historicamente, mesmo consideradas as críticas sobre abusos e efetividade de operações como a Lava Jato no Brasil, muitas empresas passaram a buscar padrões elevados de compliance, transparência e governança, o que trouxe não somente benefícios de mercado mas também em relação a retenção de talentos e atraindo investidores de qualidade superior – condições que não deveriam ter retrocessos. Afrouxar os controles pode gerar desconfiança no mercado global, levando investidores e consumidores a optarem por parceiros de países com políticas anticorrupção mais rigorosas – além de expor as empresas a sanções locais.

Riscos e cenários futuros para as empresas

A reorientação do FCPA não extingue a lei, mas altera seu escopo e a alocação de recursos investigativos. O objetivo de proteger a competitividade das empresas dos EUA e assegurar vantagens estratégicas tem o potencial de enfraquecer a tradição do FCPA como ferramenta e protagonismo no combate à corrupção transnacional.

Apesar das recentes ações administrativas, leis anticorrupção como o FCPA, as normas de combate à lavagem de dinheiro (AML) e a legislação contra fraudes continuam em vigor, sem oferecer novas defesas legais para empresas ou indivíduos. Investigações podem ainda ser iniciadas, embora de forma excepcional e por um período limitado (180 dias).

Programas de compliance permanecem essenciais para manter uma disciplina financeira rigorosa e controles internos que previnam fraudes, desperdícios e abusos. Esses programas fortalecem a gestão de ativos, orçamentos, moral dos funcionários e protegem contra custos adicionais decorrentes de pagamentos indevidos. Mais ainda, as obrigações legais e os compromissos contratuais permanecem inalterados e parceiros de negócios, como bancos e auditores e governos, continuarão a exigir o cumprimento dessas obrigações – no Brasil, diversos Estados já possuem leis em vigor exigindo programas de conformidade para licitantes em contratações públicas acima de determinados montantes.

Igualmente importante é considerar que o prazo de prescrição do FCPA pode chegar a oito anos em certos casos, o que significa que qualquer conduta inadequada hoje pode representar um risco de aplicação da lei por muitos anos, atravessando administrações futuras (e mesmo a possibilidade desta atual decisão ser revista), e embora a ordem executiva afete apenas o DOJ, a SEC provavelmente continuará com sua atuação, especialmente em relação às normas contábeis.

Além disso, outros países e organizações internacionais estarão determinados a intensificar a fiscalização de empresas americanas, o que pode aumentar a pressão regulatória global. A divulgação e investigação de casos de corrupção pela mídia, denunciantes e acionistas continuarão, aumentando os riscos reputacionais para as empresas, mesmo na ausência de ação governamental imediata.

Informar os grupos de interesse sobre as expectativas de compliance para evitar interpretações equivocadas que possam levar a comportamentos de risco também é uma condição que precisa ser reforçada, e com um foco rigoroso na eficácia dos controles de pagamento para mitigar riscos de corrupção, lavagem de dinheiro e outras atividades ilícitas.

Insegurança jurídica

É, contudo, latente o risco de insegurança jurídica.

Está em jogo a reputação das empresas norte-americanas e comprometimento da eficácia dos acordos multilaterais que vêm sendo construídos ao longo dos anos, especialmente ao gerar divergências entre a atuação das autoridades americanas e os esforços de países que mantêm políticas anticorrupção rigorosas, como o Brasil. Tal discrepância pode abrir espaço para que outras nações assumam maior liderança na agenda global de combate à corrupção, enquanto os EUA verão sua influência e credibilidade enfraquecidas na manutenção de um padrão elevado de integridade e transparência no comércio internacional.

O futuro dessa política dependerá das reações do judiciário e da comunidade internacional, bem como dos ajustes que venham a ser implementados para equilibrar os interesses estratégicos dos EUA com a necessidade de preservar um ambiente de negócios global confiável e colaborativo.

* Bruno Ferraz de Camargo é sócio-fundador da XiCa Advogados e mestre em direito empresarial internacional. Atua em ética, compliance, concorrência justa e governança há mais de 25 anos.