
Trabalhando com regulação de capital natural há mais de duas décadas, meu repertório de temas predominantes, pelo menos até 2020, para o agronegócio brasileiro era invariavelmente traduzido pela economia real como custo, risco, passivo e limitações dos modelos de governança e gestão.
Vejamos: reserva legal florestada e delimitada; áreas de preservação permanente devidamente preservadas; sistemas de unidades de conservação; código florestal de 2012 com constitucionalidade questionada por seis anos passando a produzir plenos efeitos apenas em 2018; cadastro ambiental rural sucedendo a averbação da reserva legal na matrícula; autorizações de supressão de vegetação e processos infindáveis e morosos para obtê-las; conservação, preservação e manejo sustentável; defensivos e logística reversa de suas embalagens; manejo de dejetos e efluentes; controle de emissões atmosféricas do maquinário agrícola; etc.
A partir de 2020, meu repertório de temas teve um upgrade na qualificação: pude traduzi-los na economia real como eficiência, materialidade, otimização e longevidade de processos e produtos via gestão de risco adequada e planejamento estratégico e inovação, mas isso ainda ocorria de forma tímida quando a conversa era com o nosso agronegócio.
A difusão das diretrizes ESG pelo mercado financeiro global, a constatação de interdependência entre elos da cadeia de valor com efeito dominó, a normatização global trazendo rastreabilidade à tona e a ‘descoberta’ das normas climáticas globais, além da materialização de riscos climáticos em maior intensidade e frequência, impulsionaram iniciativas e algumas ações efetivas de governança de clima e natureza por parte do agronegócio tropical brasileiro, felizmente.
Entretanto, ainda nos faltava a construção de posicionamento coeso e robusto desse setor abraçando a variável de clima e natureza como ativo ao seu negócio.
Percepção do agro
Eis que chegamos a 2023 e 2024 com as discussões do projeto de lei do mercado de carbono, parte do agronegócio volta às mídias deflagrando embates fundamentados em custos de observância e alegações relacionadas a métricas tropicais validadas. Uma pena, porque aqui houve um reforço enorme à percepção de o agro ser um setor reticente (e muitas vezes resistente) à governança climática e de natureza.
Incrível é que ainda hoje, em discussões sobre obrigações de redução de emissões a serem impostas ao setor industrial, ouço da alta liderança: mas por que a gente e o agro não?
Pior, o questionamento sempre vem daqueles que estão mais versados no tema, conhecedores de nossa matriz de emissões brasileiras, e que genuinamente formam suas percepções a partir dos dados disponíveis ao mercado sobre comportamento do agro em relação a governança climática e de capital natural.
Mas, será que é isso mesmo?
Na minha perspectiva, não. A percepção é diferente dos fatos, mas os fatos não são divulgados ao mercado como deveriam.
Falta branding em duas perspectivas: temos uma parte do agronegócio brasileiro trabalhando árdua e extensivamente em governança climática e de capital natural e a economia real vem nos mostrando que há um oceano de oportunidades para o agronegócio brasileiro, se quisermos inovar, claro.
Vamos a alguns fatos.
A agricultura tropical regenerativa, integrada a estratégias de baixo carbono e de gestão da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos, deixou de ser um experimento. Está em fase de validação ampla, com base científica, impacto mensurável e, mais importante, potencial de monetização com integridade.
Em pastagens bem manejadas da Amazônia, por exemplo, o sequestro de carbono pode alcançar 7,2 toneladas de carbono equivalente por hectare (tCO₂e/ha) ao longo de dois anos. Se cruzarmos esse dado com a estimativa oficial da Embrapa – US$ 11,54/tCO₂e como valor de referência para emissões da agricultura brasileira – temos uma linha de receita potencial na casa dos R$ 400 por hectare/ano.
Isso sem incluir os efeitos positivos sobre a fertilidade do solo, resiliência hídrica ou biodiversidade funcional (essencial para prover serviços ecossistêmicos).
E o alerta é oportuno: a perda de carbono orgânico no solo já é um problema declarado na Europa, com risco alto em mais de 80 milhões de hectares. O Brasil, com clima tropical e solos naturalmente menos ricos em matéria orgânica, não pode subestimar esse ativo.
O que falta
O ponto crítico? Ainda faltam escala, padronização e modelos simplificados de monitoramento, relato e verificação (MRV), validados no Brasil e internacionalmente, que dialoguem com a realidade do agronegócio tropical, especialmente considerando os pequenos e médios produtores.
Outro vetor de monetização vem da rastreabilidade. A rastreabilidade passou de exigência reputacional a pré-requisito de acesso a mercados estratégicos. O programa adotado pelo Pará é o primeiro obrigatório no país e poderá aumentar em até 45% o valor anual da produção de gado – especialistas no setor indicam um percentual menor, de 15 a 25%, mas ainda assim seria um prêmio considerável.
Isso ocorre porque carne e couro rastreáveis, sem passivos socioambientais, significam riscos reduzidos e podem, esperamos que em futuro próximo, fazer jus a preço-prêmio.
Esse modelo – ainda incipiente – precisa ser visto não como custo, mas como diferencial competitivo. E não será escalado apenas pela via regulatória. O financiamento público e privado precisa acompanhar com critérios que reconheçam o valor dos ativos ambientais entregues no campo.
Além da necessária pesquisa e desenvolvimento, o desafio está na escala e no capital intensivo para adoção na largada. Aqui, o crédito rural e os fundos de fomento têm papel essencial: financiar rastreabilidade é financiar acesso a mercado e adoção de boas práticas agropecuárias, além de reduzir riscos.
O agronegócio tropical tem vantagens comparativas fundadas em nossa disponibilidade de capital natural em quantidade e qualidade – pelo menos até agora – e condições climáticas únicas. Mas para que isso se converta em receita recorrente, branding adequado e legitimidade fundada em governança climática, será preciso alinhar ciência, mercado e política pública – em escala, com transparência e integridade – incorporando as variáveis de clima e natureza aos instrumentos econômicos da política agrícola e da lógica de mercado.
Precisamos redesenhar os instrumentos de incentivo, financiamento e governança para que clima e natureza deixem de ser só passivos a evitar – e passem a ser ativos capazes de gerar valor real para o agronegócio brasileiro.
O Brasil pode liderar a economia climática no agro, se agir agora.