Em Sidrolândia (MS), estima-se que 20 mil melancias tenham apodrecido no pé na última semana de fevereiro. A causa: o calor extremo. “A melancia que estava em torno de 40 centímetros de altura, a folha bem vigorosa, torrou. Matou a rama e matou todos os frutos”, relatou um agricultor ao repórter do Jornal Nacional, que noticiou o fato. As altas temperaturas também impactaram a colheita de soja e de morangos no Centro-Oeste.
O episódio exemplifica a materialização do risco climático: a perda ocasionada por eventos extremos que deixou de ser apenas uma possibilidade para se tornar realidade.
A emergência climática, que desta vez trouxe prejuízos aos produtores de Sidrolândia, pode abalar severamente a nossa economia. Com safras perdidas, fazendeiros terão dificuldade de pagar financiamentos, o que resultará em taxas de juros mais altas. E a produção menor de alimentos terá efeitos inflacionários para quem mora nas cidades, com o aumento do preço da comida. O risco climático ameaça todos os setores econômicos. A bandeira vermelha na conta de energia, em períodos de seca prolongada e reservatórios de hidrelétricas esvaziados, é suficiente para ilustrar o ponto.
Resoluções do Banco Central e do Conselho Monetário Nacional obrigaram as instituições financeiras a avaliar e gerenciar os riscos climáticos das suas atividades, de modo a evitar perdas financeiras. A regulamentação também prevê mecanismos de transparência, com regras de divulgação de informações em relatórios periódicos de gestão de risco. As medidas são importantes para proteger o sistema financeiro nacional – e a economia – contra as mudanças climáticas.
Mas, para mitigar os efeitos da crise do clima e adaptar o país à desafiadora realidade do século 21, precisamos fazer muito mais do que apenas gerenciar riscos. Precisamos transformar as carteiras de financiamento e investimento, de modo que os recursos que hoje impulsionam negócios baseados em desmatamento ou energias fósseis – principais fontes de emissão de gases de efeito estufa – sejam redirecionados para atividades sustentáveis e lucrativas, como as energias renováveis ou cadeias produtivas da biodiversidade. Além de medidas prudenciais, precisamos de medidas promocionais para impulsionar a transformação ecológica.
Em razão de seu arcabouço institucional desenvolvimentista, estruturado em torno de bancos públicos dotados de vultosos recursos financeiros, o Brasil tem plenas condições de escolher onde quer investir seu dinheiro e quais atividades econômicas deseja promover. Não seria uma novidade em nossa história. Nos anos 1960 e 1970, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) foi peça chave em estratégias do Plano de Metas e do II Plano Nacional de Desenvolvimento, que visavam fomentar as então nascentes indústrias siderúrgica, de papel e celulose e o setor elétrico. Não fossem por incentivos intencionais e direcionados (que permanecem, aliás), esses segmentos, hoje importantes para o Produto Interno Bruto, poderiam ser inexpressivos.
É óbvio que o capitalismo financeiro globalizado de agora traz complexidades antes inexistentes. Mas, o ferramental desenvolvimentista segue à disposição e dotado de inegável potencial indutor. Bancos como o BNDES, o Banco do Nordeste e o Banco da Amazônia, criados por lei com o objetivo explícito de estimular o desenvolvimento do país, são regularmente abastecidos com dinheiros públicos que podem muito bem ser redirecionados para negócios de baixa emissão.
Economia verde subfinanciada
Hoje, no entanto, a chamada “economia verde” está subfinanciada. O BNDES, por exemplo, destinou menos de 25% dos seus desembolsos para este segmento, em 2023. A atual gestão tem méritos: aumentou os recursos para a agenda, que estavam rebaixados a 14% em 2021. Ainda assim, é pouco. Se o plano do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, é a “transformação ecológica” da economia, são os negócios sustentáveis que devem abocanhar 75% do montante.
Certamente não é tarefa simples, até porque o desinvestimento em setores intensivos em carbono também é considerado um risco climático contra o qual o sistema financeiro busca se proteger – afinal, a perda de valor das empresas de petróleo traz prejuízos para quem nelas investiu. Mas, sem inovação na governança dos bancos públicos, essa tarefa se tornará impossível. Três propostas do Projeto de Lei Complementar nº 176/2024, em tramitação na Câmara dos Deputados, podem nos colocar no rumo correto.
Primeiro, é preciso democratizar os conselhos de administração dos bancos públicos, com a inclusão de cientistas, representantes de povos tradicionais e membros de comunidades afetadas por eventos extremos nesses espaços. Quando decisões estratégicas forem ponderadas pelo conhecimento desses segmentos, haverá maior apetite para escolhas que resultem em mudanças efetivas em nossa matriz econômica.
Segundo, é preciso aprimorar a transparência sobre desembolsos bancários, com a obrigação de quantificação e divulgação das emissões financiadas, por setor e região geográfica, bem como dos montantes de pedidos de crédito negados para atividades intensivas em carbonos. Essas informações devem ser submetidas ao amplo escrutínio público e enviadas à apreciação de autoridades com expertise sobre o tema, como as Comissões de Meio Ambiente do Poder Legislativo.
Por fim, é preciso definir metas para o redirecionamento de recursos, com o estabelecimento de percentuais para a alocação de empréstimos em atividades de baixa emissão. Como são os setores verdes que precisam crescer, a maior parte dos recursos disponibilizados pelos bancos públicos deveria ser destinados a eles.
E isso precisa vincular administradores públicos, por força de lei, independentemente da vontade de quem esteja no governo, única forma de trazer as garantias necessárias para o financiamento da transformação ecológica. Basta lembrar que a investidora BlackRock e o banco Goldman Sachs abandonaram seus compromissos climáticos voluntários tão logo Donald Trump venceu as eleições.
Por mais que gerenciemos riscos, enquanto não redirecionarmos nossos fluxos financeiros, mitigando consistentemente nossas emissões, melancias seguirão torrando país a fora.
* Sergio Leitão é diretor executivo do Instituto Escolhas
Rafael Giovanelli é gerente de pesquisas do Instituto Escolhas