COLUNA - PAULA DE SANTIS

Nos livros, a guerra com realismo, mas também com uma pitada de esperança

Conflitos em todo o mundo geram ansiedade, muitas dúvidas e mostram, como os livros, que nunca há um verdadeiro vencedor

O livro infantojuvenil "A Guerra", de José Jorge Letria e André Letria
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Há muito tempo as crianças são levadas a acreditar que o mundo está dividido em dois: o bem e o mal. A atribuição de valor moral a pessoas, coisas e acontecimentos acontece muito cedo – em casa, na escola, na igreja, nos eventos esportivos, em qualquer meio social. Desde pequenas, também por seguir o exemplo de seus cuidadores, crianças querem se posicionar. Escolher um dos lados para defender.

As crianças crescem, e quando adultas algumas chegam até mesmo a liderar exércitos. Colocam frente a frente jovens que nunca se viram na vida submetidos a uma única ordem: destruir.

No mundo contemporâneo, a ideia de que se tem de lutar contra alguns em nome de proteger outros ou de destruir determinado vilão com a finalidade de que os bons dominem é alimentada também pela indústria de brinquedos e de entretenimento. Na esfera dos adultos, esse incentivo acontece na política.

As guerras são a manifestação mais grotesca dessa visão polarizada. Cobram da sociedade – todos já fomos crianças e temos esse mecanismo entranhado – uma posição imediata. Exigem que se tome um partido, de preferência do lado certo.

A guerra de Israel contra o Hamas, deflagrada recentemente mais uma vez, tem provocado no mundo inteiro um debate violento de opiniões a favor de um lado ou de outro, criando quase uma espécie de competição entre quem sofre mais. Como se fosse possível comparar dores.

Israelenses e palestinos não estão sozinhos. Na África, são muitos os países em conflito armado atualmente, alguns (re)iniciados este ano. Entre eles, o Níger e o Gabão, além de Burkina Faso e o Mali. Armênia e Azerbaijão romperam este ano um frágil cessar-fogo e retomaram uma disputa territorial e étnica também. Sírios vêm sendo destruídos há mais de dez anos. Russos e ucranianos acenderam igualmente muitos debates de tomadas de partido quando, há mais de 18 meses, a eclosão de sua guerra assombrou a Europa e o mundo.

E as crianças? De que lado ficam?

É praticamente impossível explicar a guerra de forma simples e rápida. Como contar que adultos não conseguem resolver seus problemas de outra maneira que não se matando, matando seus filhos e destruindo suas casas e seus países? Como dizer que tudo aquilo que ela é orientada a não fazer com seus colegas é praticado pelas mesmas pessoas que as orientam? Onde ela vê na prática solução de conflitos de forma pacífica? Que comentários ela ouve dos adultos que a rodeiam sobre os conflitos bélicos em curso?

Pensar sobre essas perguntas já é suficiente para deixar qualquer um sem ar. Então, respira fundo e abre o diálogo. Não é necessário ter opiniões prontas.

É ainda na infância que os horizontes precisam se ampliar. As crianças devem ser guiadas pelo imenso vale que se estende entre o bem e o mal, sujeito a infinitas variáveis. Neste lugar está a história, normalmente longa e cheia de diferentes pontos de vista. Conciliá-los é o segredo do futuro. Estar ao lado da paz, a solução mais sábia.

A Guerra

José Jorge Letria e André Letria

Amelì Editora, 2019

Uma narrativa de texto e imagens que tenta explicar a guerra pelos impactos que causa antes, durante e depois de sua passagem. O texto poético acompanha imagens que permitem múltiplas interpretações. Em ambos, a guerra é o personagem principal. A obra foi escrita pelo jornalista, poeta e dramaturgo português José Jorge Letria, que também é formado em História e é mestre em Estudos da Paz e da Guerra nas Novas Relações Internacionais, pela Universidade Autônoma de Lisboa. A ilustração é de André Letria, seu filho e parceiro em muitas publicações, e vencedora do prestigiado prêmio Nami Concours, da Coréia, em 2019.

Seis homens

David Mckee

Editora Record, 2014

Seis homens que queriam apenas trabalhar e viver em paz começam a ser assombrados pelo medo de perder suas conquistas materiais. Vão tomando medidas para se proteger e se defender, e a vida perde o foco inicial. Como uma bola de neve, a situação vai se agravando, sempre com base em… nada. Nessa obra, em determinado momento, o livro e dois grupos “inimigos” estão divididos por um rio, que ocupa também a divisão entre as páginas duplas. A ansiedade, a ganância e a falta de diálogo levam a um final de destruição. Uma história para conversar sobre conflito, intolerância e paz e seus infinitos sentidos em um mundo tão diverso.

O muro no meio do livro

Jon Agee

Pequena Zahar, 2019

Neste livro há, literalmente, um muro entre as páginas duplas, separando personagens de um lado e do outro. Narrado em primeira pessoa pelo personagem que habita o lado esquerdo do muro, discorre sobre os perigos do outro lado e a segurança (na realidade apenas a sensação dela) presente do seu lado do muro. Enquanto o texto conta uma história, as imagens contam outra bem diferente. De forma leve e bem humorada, traz à tona a discussão sobre a necessidade do ser humano de erguer muros no lugar de pontes, de separar em vez de somar, de dividir em vez de unir. Muitas vezes, a salvação está no que ou em quem nos assusta.

Doze profissões para o futuro que começou ontem

Anderson Novello e Daniel Cabral

Ciranda na escola, 2023

Com ilustrações alegres, em paisagens que misturam o idílico com o futurista, o livro “recruta” um profissional por página, destacando uma habilidade essencial para o desempenho daquela função. E o que isso tem a ver com a guerra? Tem a ver com um futuro sem guerras, que esperamos que comece logo. Tão importante quanto falar sobre a guerra com crianças e jovens de maneira honesta, é abrir uma janela para um futuro com mais esperança. Essa obra faz uma proposta poética, nas palavras do próprio autor, para profissões urgentes. Entre elas, procura-se “incentivador de sonhos” e “espalhador de boas ideias”. Que tal um “semeador da paz”?

Observação: uma das consequências imediatas das guerras – e que por si só coloca países em conflito – é a imigração. Apesar da relação intrínseca entre ambas, optei por não incluir livros com esse tema. A imigração é assunto igualmente denso e complexo, com obras belíssimas dedicadas a ele. Merece, quando apropriado, uma coluna exclusiva.

* Paula de Santis é jornalista, escritora e mãe do Rodrigo e da Alice. Em 20 anos de carreira, escreveu sobre economia e finanças para Gazeta Mercantil, Estadão, Folha e Época. Pós-graduada em O Livro para a Infância, d’A Casa Tombada, publicou, de forma independente, sua primeira obra infantil “O brilho do escuro”, disponível em sete livrarias de rua em São Paulo. Hoje mora na França.