
Lembra daquela piada (com um fundo de verdade) de quando você pergunta para uma criança de onde vem o leite que ela toma no café da manhã e ela responde “da caixinha!” ou “do supermercado!”, com um olhar que estranha a obviedade da pergunta?
Então…
Elas não sabem e sequer muitos adultos conhecem a origem de diversos alimentos essenciais para a sobrevivência de centenas de milhões de pessoas. Especialmente aquelas que não têm acesso ao supermercado – leia-se por “acesso”: dinheiro, transporte, segurança e até autoestima para entrar em um.
A pupunha do espaguete fitness não chega ao mundo gelada, descascada e desfiada numa assustadora e poluente bandeja de isopor coberta por filme plástico. O milho não brota em latinhas verdes e amarelas e o açaí não nasce cremoso em potes roxos no formato da gaveta do freezer.
Chegamos à era em que vemos prateleiras, lojas (vide as famosas “bombonières” que pipocaram nos últimos anos nas esquinas das cidades) e até bairros sem alimentos naturais. Como consequência, somos hoje 1 bilhão de obesos no mundo (segundo dados de um estudo de 2022, publicado na revista científica Lancet e divulgado pelo OMS).
Entre a primeira e a segunda frase desse parágrafo há uma lista imensa de acontecimentos, justificativas e complexidades. E entre o cenário das pessoas que não acessam supermercados e aquelas que estão doentes por excesso de comida de baixa qualidade, um outro mundo de contradições.
Cada um, porém, pode deixar sua pedra na reconstrução dessa catedral começando por onde a relação entre esforço e resultado é mais direta: dentro de casa. Já se sabe que crianças que participam das compras e da preparação dos alimentos tendem a comer com mais qualidade e a querer provar mais variedades. Aquelas que vêem pessoas à sua volta comendo bem, idem (o famoso liderar pelo exemplo).
Conhecer a origem dos alimentos também é uma forma de chegar a esses corações e mentes (além das bocas) com histórias que inspiram, informam ou apenas entretêm. Pode ser também mais um daqueles fios que desenrolam uma conversa divertida, saborosa e esclarecedora.
A Amazônia, sempre ela
“Entre 8 mil e 10 mil anos atrás, a região onde hoje está a floresta amazônica passou por um grande período de seca. Só havia áreas de vegetação aberta e savanas, e apenas algumas matas nos montes. Para subsistir, os antigos povoados selecionaram incessantemente variedades de plantas e sementes que plantaram até conseguir as espécies que hoje conhecemos. Esse foi o início da horticultura. A seguir vieram épocas de chuva e, por meio do trabalho humano, a selva começou a se expandir progressivamente, até alcançar a vasta extensão atual e sua grande biodiversidade.”
Esse é um trecho da apresentação do livro Kaaliawiri, a árvore da vida, de Francisco Ortiz e Ciça Fittipaldi, publicado no Brasil pela Ôzé Editora. Ortiz é escritor, antropólogo, etnólogo e fundador da Fundação Etnollano, organização que acompanha há 40 anos processos de autonomia e governo em comunidades das planícies orientais na Colômbia e na Amazônia.
Na apresentação da obra, ele conta como e porquê transformou em texto as palavras de Freddy Rojas, líder do povo Piapoco, que ele conheceu em Los Llanos, perto da cabeceira do rio Orinoco, na fronteira entre Colômbia, Brasil e Venezuela.
Na obra, Freddy narra detalhadamente o mito Kaaliawiri, em que uma única árvore produz todos os frutos essenciais para a alimentação, como a mandioca, o abacaxi e a batata, entre tantos outros. Tudo começou com a fúria de Kuwaiseiri, o criador, com o estilo de vida que ele mesmo havia proporcionado aos homens e aos animais – todos considerados gente, falando a mesma língua. Como castigo, esconde os alimentos.
A partir daí começa uma aventura pela floresta em busca de comida. As diversas façanhas e as adversidades do caminho para chegar à árvore e conseguir os frutos explicam algumas características físicas pitorescas dos animais.
Assim como no mito, estudos paleobotânicos e arqueológicos indicam que o cultivo dessas plantas hoje é resultado de um processo de domesticação praticado por gerações de homens e mulheres indígenas. Tudo a ver com esse artigo publicado pelo Reset sobre valorização do conhecimento tradicional.
Até aqui, a gente já consegue conversar sobre as comidas do Brasil, diferenças, semelhanças, vantagens e desvantagens de produtos ultraprocessados e industrializados, cultura indígena e sabedoria ancestral, de gente que nasceu na terra e a conhece como a palma da mão (vale para indígenas, ribeirinhos, agricultores familiares, etc.).
No final da história, a árvore foi derrubada (por uma boa razão) e diz a lenda que até hoje você pode ver o “toco” do tronco que sobrou. É o monte Autana, na Venezuela (vale a pena dar um google para ver as fotos, são espetaculares).
O mito de Kaaliawiri é compartilhado por vários povos indígenas da América do Sul, cada um com suas variações. O Brasil também tem seus relatos no norte amazônico para contar a história da árvore de todos os frutos.
As ilustrações são quase uma obra à parte. Elas são resultado de uma pesquisa de campo nos sítios arqueológicos Piapoco e em outros povos da floresta amazônica que compartilham mitos e tradições.
Ciça Fittipaldi é escritora, ilustradora e artista gráfica. Estudou Desenho e Plástica na Universidade de Brasília e é pesquisadora de culturas indígenas, africanas e afro-brasileiras. É também pioneira na abordagem desses temas na literatura infantil . Ela já venceu o Prêmio Jabuti, o mais importante do mercado editorial no Brasil, e as ilustrações de Kaaliawiri foram expostas este ano na Mostra Internacional de Ilustradores da Feira do Livro de Bolonha, na Itália, a mais importante do mundo para o setor.
O livro foi publicado originalmente na Colômbia, pela editora Monigote.