(Atualizado em 07/02 para incluir a informação de que o livro O pato, a morte e a tulipa, até então, esgotado no Brasil, terá nova impressão.)
“O meu amanhecer vai ser de noite”
(Verso do poema ‘O livro sobre nada’, de Manoel de Barros)
Todo ano um ano acaba e outro começa.
Adultos definem novos projetos e refazem velhas promessas. Crianças continuam com o mesmo plano: brincar ainda mais e colecionar descobertas, agora até o infinito. Ainda assim, infelizmente, nem todas podem realizar esse direito. Quando poderão? Em que momento?
Uma coisa todas elas têm em comum: levam alguns anos para conseguir se localizar no tempo. Têm dificuldade em entender seu ritmo, suas medidas e, sobretudo, seu tempo. Confundem o ontem, com o hoje e com o amanhã. Misturam o futuro e o passado.
Anseiam pela chegada do aniversário, pelo dia da visita de alguém, para uma fase difícil acabar, mas não têm ideia de quantas vezes o sol precisa nascer até lá.
Precisam de rotina e de experiências para entender esse fenômeno que passa sem parar, mas que nunca vemos e sobre o qual não temos qualquer controle.
Coincidência ou não, a noção de tempo é básica para qualquer tipo de investimento. É também urgente para reverter o ritmo de uso e abuso dos recursos naturais, se quisermos ter um planeta no futuro.
É essencial quando se pensa em saúde mental, cada vez mais deteriorada no Brasil, e nos seus efeitos de curto e longo prazo sobre a vida profissional e pessoal.
É prioritária ao se refletir sobre o aumento da expectativa de vida do ser humano, que envolve desde o equilíbrio da previdência social à prática da generosidade, tema da coluna de outubro, no que se refere a olhar, ver e cuidar dos que estão à nossa volta.
A literatura infantojuvenil traz uma série de abordagens para estimular a conversa sobre esse senhor de todos nós, o tempo.
Temporina
Júlia Medeiros e Natália Gregorini (Ozé Editora, 2022)
Com um texto primoroso, cheio de graça e acessando sem descanso a imaginação dos leitores, as autoras apresentam Temporina, uma senhora que perde a cor logo depois de suas lembranças escaparem pela janela. Com a ajuda de Vô Cambeva, das crianças e de personagens mágicos, Temporina inicia uma jornada rumo à restauração de suas memórias.
A empreitada só é bem sucedida depois de seu reencontro com o realejo, recuperado pelas hábeis mãos de Vô Cambeva. O encontro entre os dois reativa as lembranças que um tem do outro e as cores voltam a invadir a vida de Temporina. Um livro sobre recordações e sobre o amor, que reforça a importância da fantasia e da magia na infância.
Aqui estamos nós
Oliver Jeffers (Editora Moderna, 2019)
Inspirado pelo nascimento do filho, o escritor e ilustrador australiano Oliver Jeffers decide criar um livro no qual conta, para o bebê, onde estamos e como funciona a vida na Terra. As explicações giram em torno de elementos físicos e geográficos, que estão aqui há milhões de anos, e trazem lições de sobrevivência nesse lugar tão imenso e cheio de gente, para que a vida perdure.
Sua maior lição é a de que não estamos sozinhos. Portanto, diversidade, tolerância, respeito e partilha são conceitos-chave para viver bem neste lugar.
Sem ser citado, o fenômeno tempo permeia o livro de maneira direta e indireta, nos levando a refletir sobre sua passagem. Afinal, a Terra não para de girar nem durante essa leitura. Além disso, tem como interlocutor um bebê – quer símbolo maior de tempo? – com muita vida e aventuras pela frente, nesse planeta tão especial.
A obra recebeu o selo de Altamente Recomendável da FNLIJ, em 2019, na categoria Tradução, Adaptação, Informativo e foi um dos 30 melhores livros do ano, segundo a revista Crescer.
Tudo em inho
Ronaldo Simões Coelho e Santiago Régis (Mazza Edições, 2022)
Um livrinho bonitinho e engraçadinho. Falar no diminutivo, especialmente com crianças, é um clássico na língua portuguesa, especialmente entre brasileiros. Estrangeiros estranham. Acham engraçado. Para nós, culturalmente, é um carinho.
Um menininho inicia cedinho um longo caminho até chegar em casa para ouvir seu avô ler para ele um versinho. Esse livrinho fala sobre a passagem do tempo, o crescimento e o amadurecimento.
O menininho que começou sua jornada com uma bicicleta de rodinhas, logo logo não precisará mais desse apoio. E tão logo deixará de ser criança.
Publicado pela Mazza Edições, especializada em obras da cultura afro-brasileira, especialmente de autoria negra, ele foi ilustrado por Santiago Régis, do Maranhão.
O pássaro encantado
Eliane Potiguara e Aline Abreu (Jujuba, 2014)
Pela perspectiva de uma criança pequena, os avós são, provavelmente, seu primeiro contato com um tempo mais longínquo. Na cultura indígena, esse vínculo com os idosos e com a sabedoria e a memória que carregam dentro de si é ainda mais marcado e valorizado.
Os avós, para os povos indígenas, chegam a ser mágicos. Trazem aos mais novos costumes e ensinamentos que aprenderam também com seus avós e têm a missão de manter vivos ao longo de gerações. São os guardiões da oralidade e das histórias que se transmitem sem livros.
Essa obra explora a figura poderosa e mágica de uma avó, com ilustrações cheias de movimento e de tirar o fôlego, de Aline Abreu.
As linhas no rosto de Nana
A premiada autora e ilustradora italiana propõe uma história de vida contada por meio de cada uma das rugas no rosto de uma avó. Cheia de curiosidade, a neta quer entender o que são e por que tantas linhas estampam o rosto de Nana.
Uma história delicada, com ilustrações cheias de afeto, que fala sobre o envelhecimento sob uma perspectiva realista e sobre o quanto as marcas do tempo podem representar momentos alegres e divertidos, que vão compondo a trajetória de cada um.
O livro recebeu o selo de Altamente Recomendável da FNLIJ, em 2020, e trata o tempo como um bom companheiro de aventuras!
Só mais cinco minutos
Marta Altés (Brinque-Book, 2021)
A premiada autora espanhola mostra nesse livro como pais e filhos podem ter perspectivas completamente diferentes sobre o tempo. Um pai sempre atrasado e apressado e dois filhotes brincando com cada instante marcam situações da vida doméstica de formas variadas e divertidas.
Fato é: crianças sempre têm tempo para uma travessura a mais, para uma observação inédita ou para uma diversão. Para os pais, os dias são longos, e os anos, curtos. O narrador é uma das crianças. Seu objetivo: explicar ao pai o significado do tempo e como tirar o melhor proveito dele.
O urso contra o relógio
Joelle Jolivet e Jean Luc Fromental (FTD, 2020)
Uma versão infantil das dificuldades pelas quais passam todos os adultos: não conseguir fazer tudo caber em um dia de “apenas” 24 horas, ser engolido pelo tempo, procrastinar, compromissos demais, problemas de organização.
Um urso dorminhoco e sempre atrasado ganha um relógio para tentar melhorar sua relação com o tempo e, consequentemente, sua qualidade de vida.
Ele também aprende a ler as horas (num relógio analógico) e a obra dedica um bom espaço, didático, a esse aprendizado. O objetivo é que ele se torne amigo do tempo. Algum adulto que você conhece já conseguiu?
O pato, a morte e a tulipa
Wolf Erlbruch (Companhia das Letrinhas, 2023)
Publicado no Brasil pela extinta Cosac & Naify, em 2009, estava esgotado, mas agora vai voltar pelas mãos de outra editora. O livro impresso já está em pré-venda no site da Companhia das Letrinhas.
A obra aborda a chegada da morte. Tema tabu e intimamente ligado à finitude do tempo, ele é apresentado ao leitor de maneira inusitada. Ao conhecer o pato a quem deveria levar, a morte se encanta com ele. Permite-se esquecer do tempo e desfrutar um pouco da vida. É gentil e dá a ele, o pato, mais tempo. Poético, profundo e com ilustrações que encaminham o leitor com delicadeza à reflexão. Rende conversas, perguntas, respostas, ‘não seis’ e profundos suspiros.
Um vídeo animado resume a história.
O autor, que recebeu em 2006 o prêmio Hans Christian Andersen pelo conjunto de sua obra (a maior distinção internacional dada a autores e ilustradores de livros infanto-juvenis), faleceu no começo de dezembro.
Cantigas por um passarinho à toa
Manoel de Barros e Kammal João (Companhia das Letrinhas, 2018)
Não poderia faltar nesta seleção um livro para esquecer o tempo. O poeta modernista de Mato Grosso, falecido em 2014, é quem melhor representa essa ideia na literatura infantil brasileira.
Escrevia sobre a existência de forma muito profunda, com a atenção voltada para o que encontrava no chão e para as miudezas da vida, fortemente influenciado pela natureza. Tinha tempo.
Formado em direito e dedicado, a partir de determinada fase da vida, à fazenda de gado da família no Pantanal, recebeu o Prêmio Jabuti em 1989 e em 2002. Com linguagem simples e coloquial, encanta crianças de todas as idades, de 0 a 99 anos, e tem esse poder mágico, de fazer esquecer o tempo.
Neste livro de poemas para crianças, ele cria um mundo de fantasia e sugere imagens non sense que divertem e levam longe qualquer leitor, fazendo-o esquecer de seus relógios, agendas e despertadores.
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PS: Especialmente por esta publicação estar numa plataforma sobre negócios de impacto, gostaria de convidá-los a refletir sobre o peso de uma livraria independente, especialmente de rua, na vida de um bairro. O que ela representa? Que papel exerce? Como se relaciona com seu entorno?
Sempre que possível, compre seus livros em uma livraria. Dê-se o tempo e o prazer de circular por uma e prestar atenção no seu catálogo, nos seus funcionários, na sua história. Feliz Ano Novo, cheio de boa literatura!