“A atenção é a forma mais pura e rara de generosidade.”
Simone Veil, política francesa, ex-Ministra da Saúde, ex-Presidente do Parlamento Europeu, sobrevivente do Holocausto, responsável pela aprovação da lei que descriminaliza o aborto na França em 1974 (1927 – 2017)
Generosidade se aprende. Generosidade se ensina.
Generosidade pode ser inspiradora. Generosidade pode inspirar.
Precisamos falar sobre generosidade. Há que se usar essa palavra e falar dela, de seu significado e de seus impactos. Devemos, com ela, quebrar ou, no mínimo, equilibrar essa onda de violência e agressão que vem tomando conta de parte da população em um país machucado pela fome, pela falta de saúde física e mental, pelos crimes ambientais e sociais, pelo desprezo à educação pública e pela escassez de segurança.
Não vou falar de filantropia, nem de responsabilidade social, nem de doação, no sentido técnico ou corporativo, ainda que exista uma relação entre todas essas ideias.
O objetivo hoje é falar sobre estar no mundo de maneira mais atenta ao outro, às suas necessidades e às suas dificuldades. Sobre olhar generosamente ao redor e tirar o foco de si mesmo.
Colocar-se verdadeiramente à parte para, quem sabe, a partir daí, poder estender uma mão ou um ombro amigo porque é importante e necessário – sem considerar qualquer finalidade útil ou retribuição.
Excesso de proteção
Por instinto, por amor, por questões culturais, por circunstâncias pessoais, pelas condições encontradas nas grandes cidades e por muitas outras razões, crianças brasileiras de algumas classes econômicas são, no geral, mais protegidas e mais preservadas das durezas da vida real do que as de outros países.
Sem que essa seja a intenção, adquirem um distúrbio de comportamento também chamado de “síndrome do imperador”, em que dão ordens na casa e nos adultos, fazendo tudo girar em torno delas.
Cria-se, consequentemente, uma geração de crianças egoístas, incapazes de se perceber parte de uma coletividade, em que o outro é tão importante quanto ela.
A literatura infantil ajuda a abrir os olhos e a cabeça dos pequenos, de seus pais e de seus cuidadores para esse tema tão escasso nas páginas dos jornais e na internet hoje em dia.
Os livros selecionados tratam do assunto de forma mais direta ou mais sutil, conforme o contexto da história. Cabe ao moderador da leitura fazer as provocações ou ouvir as manifestações espontâneas das crianças para falar sobre generosidade de forma direta e criar juntos maneiras de tirá-la das páginas dos livros e levá-la para a vida prática.
Sopa de Pedra Mole
Alain Serge Dzotap e Irène Schoch (VR Editora, 2021)
Um conto antigo, com diferentes versões em todo o mundo, ganha novo sabor com temperos africanos. Uma lebre muito faminta e igualmente esperta tem apenas pedras para preparar sua refeição. As ilustrações enchem os olhos, enquanto o cheiro dessa sopa solidária e coletiva vai se enriquecendo com a chegada de ingredientes inesperados.
O livro rende bons papos começando com “e se…?”. É possível explorar também o sentimento dos animais ao longo de toda a receita e no final da história. Uma obra que ajuda a falar das emoções a partir de uma situação concreta e fácil de repetir fora da história.
O Gigante mais Elegante da Cidade
Julia Donaldson e Axel Scheffler (Brinque-Book, 2018)
Um gigante resolve dar uma renovada no visual e se depara com diversas situações em que suas novas peças de roupa caem como uma luva para melhorar a vida de alguns animais. Generoso, ele vai se desfazendo do que comprou sem qualquer apego ao seu desejo inicial. Uma surpresa o aguarda no final. Uma história simpática, que rende boas perguntas para adultos e crianças, inclusive “o que é capaz de nos deixar realmente feliz?”.
Zélia
Christelle Vallat e Stéphanie Augusseau (Aletria, 2013)
Zélia, a personagem principal deste livro, deve ser discípula de Simone Veil. Essa senhora decidiu dedicar um dia da sua semana para escutar as aflições, tristezas e angústias de desconhecidos. Ao dar-lhes tempo, respeito e ouvidos, Zélia provoca uma transformação não apenas em quem vem contar suas histórias.
Até que chega o dia de Jules conversar com Zélia, exatamente no momento em que o garotinho perdeu o que tinha a dizer, seu pensamento… Uma história poética sobre acolhimento e emoções, sobre perder-se e encontrar-se porque alguém te olhou e te viu.
Uma oportunidade para entender o que significa diálogo, gratidão e empatia e para tentar concretizar “pensamentos”, essas coisas que moram dentro da gente e que de vez em quando dá vontade de dividir com os outros, para que a gente se sinta melhor e para que eles também fiquem bem.
Horton choca o ovo
Dr. Seuss (Companhia das Letrinhas, 2017)
Generoso como era, o elefante Horton aceita fazer um favor à ave Maroca, que precisa de um pouco de descanso após dias chocando seu ovo. Horton fica no lugar da ave e passa por muitas adversidades enquanto choca aquele ovo, em nome do compromisso e da atitude generosa que assumiu. O final é inusitado.
Por meio de uma situação fantástica, o livro propõe a discussão sobre os limites da generosidade e da palavra dada em relação ao comportamento do outro. Um contraponto interessante às demais obras.
Invisível
Tom Percival (Catapulta Editores, 2022)
Isabel tem olhos especiais. Mesmo com uma situação econômica instável e complicada, consegue ver a beleza da vida nas pequenas coisas do dia a dia. Quando é obrigada a mudar de casa com sua família, percebe que fica invisível para um certo grupo de pessoas. Ao mesmo tempo, passa a enxergar muitas outras pessoas invisíveis generosas e especiais e decide pertencer a este grupo.
Uma história que mostra as muitas maneiras de olhar ao redor de si e as muitas maneiras de ver o outro. O livro nos lembra também da potência multiplicadora de uma ação generosa. Dá pano para manga no bate-papo com as crianças e na exploração dos “causos” que eles contam depois de um dia na escola, por exemplo.
Afrofuturo: ancestral do amanhã
Henrique André e Tutano Nômade (autores independentes, 2022)
Este livro super colorido traz ilustrações que colocam o leitor literalmente na pele dos diversos personagens e nos apresenta símbolos variados da imensa e múltipla cultura africana. Ele apresenta, ainda, o conceito de afrofuturo: um movimento que resgata a dignidade de pessoas negras e a possibilidade de terem um futuro, ou seja, sem risco de final precoce motivado pela violência.
Ele abarca a política, a filosofia, as artes e remete ao que hoje ainda é uma utopia em vários países do mundo: a paz e a liberdade religiosa. A professora Amara pergunta às crianças da classe como elas se vêem no futuro e, com muita generosidade na escuta, acolhe o desejo e a visão de cada um, longe do senso comum, mostrando que o futuro é possível. Para todos. Nessa obra tem muita história, política, sentimentos e uma esperança contagiante!
O projeto tem um audiobook que dá acesso ao texto para pessoas com deficiência.