Em ano eleitoral, livros ilustrados propõem conversa sobre ética

Obras bem-humoradas falam sobre roubo e trapaça e promovem debates com as crianças sobre um ingrediente essencial da política

Em ano eleitoral, livros ilustrados propõem conversa sobre ética
A A
A A

2024 é ano de eleição em grande parte do planeta. Cerca de 40% da população mundial vai escolher alguém cujas decisões afetam grande parte de sua qualidade de vida, de seus direitos e de seus deveres como cidadão.

Países super populosos, como a Índia, e países peça-chave na geopolítica, como os Estados Unidos, escolherão primeiro-ministro e presidente, respectivamente. Países com regimes autoritários, como Rússia, Irã, Ruanda e Belarus, também organizam eleições, daquelas “para inglês ver”.

Na América Latina, vão às urnas cidadãos de El Salvador, Uruguai, Panamá, Venezuela e México. Destaque para este último, onde as duas candidatas favoritas são mulheres, uma delas de origem indígena, o que amplia a visibilidade das minorias – não necessariamente numéricas, mas do ponto de vista do acesso às oportunidades.

Na Ásia, Taiwan escolheu um novo presidente no último final de semana, e outros pleitos acontecem em Bangladesh, Indonésia e Paquistão. Na África, na África do Sul e no Sudão do Sul, um dos países mais pobres do mundo.

Na Europa, além da escolha dos deputados do Parlamento Europeu, vota-se também em Bélgica, Áustria, Croácia, Portugal e provavelmente no Reino Unido (o premiê indicou que as eleições parlamentares acontecem no segundo semestre). Na Alemanha, onde teme-se o avanço da ultradireita, ocorrem pleitos estaduais.

No Brasil, vamos eleger prefeitos, vice-prefeitos e vereadores em 5.569 municípios, um a mais que em 2022, após a chegada de uma nova cidade, de nome auspicioso: Boa Esperança do Norte, no Mato Grosso. Mais de 150 milhões de brasileiros estão aptos a ir às urnas.

Esta coluna recomendou, há exatos dois anos, uma série de livros para que toda a família possa falar sobre democracia, eleição e justiça social. As obras citadas continuam atuais e apropriadas.

Aqui, os livros também abordam, de forma lúdica e divertida, as relações de poder e estilos de liderança.

De tirar o chapéu

Para conectar as crianças às eleições de 2024, proponho uma discussão bem-humorada sobre ética, verdade e mentira. Sobre como o que nossos ouvidos escutam pode ser radicalmente diferente do que o que nossos olhos veem. Como nos sentimos confusos e, geralmente, traídos quando isso acontece. E o que fazemos quando sentimos raiva dessa situação.

Tudo isso está na trilogia do autor e ilustrador canadense Jon Klassen formada por Quero meu chapéu de volta,  Este chapéu não é meu e Achamos um chapéu (este último ainda não disponível no Brasil).

Em Quero meu chapéu de volta, de 2011, publicado no Brasil pela WMF Martins Fontes, um urso perde seu chapéu e começa a procurá-lo, distraidamente, fazendo perguntas para quem encontra pelo caminho. Ninguém viu. E, mesmo quando a verdade está escancarada diante de seus olhos, ele não se dá conta.

Quando finalmente parece não haver mais esperanças de encontrar o amado chapéu, ele se lembra do que viu e volta para recuperá-lo. O desfecho é subversivo e inevitável, segundo o próprio autor.

“Eis que a posse e suas implicações com o poder – a autoridade e/ou dignidade que desprendemos através dela – podem provocar cegueira, tanto que a recuperação do chapéu é acompanhada de um castigo exemplar, ou pelo menos é isso que o autor nos deixa imaginar”, escreve Ariana Squilloni, editora, autora e pesquisadora italiana de literatura infantil, para a Revista Emília, publicação digital dedicada à leitura e à escrita. 

Mas o livro não acaba com o castigo. Depois, o urso se vê obrigado a prestar contas sobre o que fez para ter o seu chapéu de volta. E é aí que vem a beleza da discussão. Isso porque o urso é pego – pelo leitor – agindo exatamente como o personagem que o trapaceou. Ou seja, mesmo tendo sido vítima, fez justiça com as próprias mãos e tentou disfarçar o que fez.

Conversa importante, mas leve

O desenrolar da narrativa propõe questionamentos interessantes para ouvir o que pensam as crianças. Está certo ou está errado? Os fins justificam os meios? Que outro final essa história poderia ter? Como é estar nos sapatos de alguém que violou um princípio ético?

Em Este chapéu não é meu (na foto), produzido em 2012 e publicado pela mesma editora, um simpático peixinho confessa, já na primeira página, que roubou um chapéu. Cheio de confiança, ele subestima a capacidade de sua vítima (um peixão) de perceber o roubo e, ainda mais, de reagir a ele.

Ele acredita que eventuais observadores estarão do seu lado, com apoio incondicional. E ainda cria uma justificativa, para ele plausível, sobre seu ato. Quem seria esse peixinho? Quem seria a vítima? Qual o lado mais fraco e o lado mais forte dessa história? Por quê?

Mas é no final que a conversa vai render. O peixinho é descoberto. E punido. Foi justo? O que deveria ter sido feito? Queria ser uma mosquinha para escutar esse papo.

É preciso ser detalhista na observação das ilustrações. Olhar com calma as expressões dos personagens em cada página para capturar o sarcasmo e a ironia que o autor entrega. Rendem boas risadas. Afinal, falar de ética, de certo e de errado, não precisa ser sempre uma conversa pesada.

A política anda de mãos dadas com essas perguntas e muitos dilemas (ou falsos dilemas) éticos. Para que a gente não perca a esperança, um pouco de humor, umas gargalhadas e boas doses de conversa séria podem ajudar crianças e adultos a refletir e a votar com mais consciência no futuro.

Observação: o último livro da trilogia, Achamos um chapéu, foi publicado pela editora portuguesa Orfeu Negro e está disponível online. Infelizmente, a editora brasileira ainda não tem planos para levá-lo às livrarias brasileiras.

Na obra, duas tartarugas encontram um chapéu e ambas querem ficar com ele. Mas há apenas um chapéu. Decidem que o certo é ninguém ficar com ele. Mas o chapéu não sai da “cabeça” delas. E cada uma vai procurar uma maneira de ter o chapéu.