ESG VEM DE BERÇO

Crianças narram violentas operações policiais nas favelas da Maré

Em 'Eu devia estar na escola', textos e desenhos feitos pelos corajosos moradores são um claro pedido de socorro

Crianças narram violentas operações policiais nas favelas da Maré
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Foi difícil encontrar as palavras para começar esta coluna. Há temas tão difíceis que preferiríamos que não existissem, só para não ter que explicar. Só para não ter que olhar no fundo dos olhos de uma criança e admitir que certas coisas acontecem.

Dado que o País das Maravilhas existe apenas na ficção, é preciso respirar fundo e mostrar a elas, em todos os Brasis, o livro Eu devia estar na escola, publicado em março deste ano, pela Editora Caixote.

Uma obra escrita e ilustrada por crianças e jovens de 5 a 17 anos – escolhidos como os porta-vozes mais adequados – para contar a crianças e jovens de outras realidades o que acontece ao longo de uma infância marcada por violentas operações policiais nas favelas da Maré, na cidade do Rio de Janeiro. Um livro sobre as nossas guerras, tão devastadoras quanto as que estão em curso hoje pelo mundo e que igualmente destroem cidades, vidas, sonhos e futuros. 

Nas suas páginas, encontra-se uma coletânea de frases e desenhos organizados e encadeados para descrever não apenas o dia-a-dia dos moradores, mas especialmente para transmitir os sentimentos de quem vive permanentemente em estado de alerta e tensão. Em cada página, um pedido de ajuda, de socorro e, até mesmo, de explicações.

A operações policiais – incursões da polícia em determinado território – acontecem no contexto de uma investigação ou de uma ação emergencial, com o uso de armas, helicópteros e carros blindados.

A frequência, a intensidade e a violência com que são executadas na Maré ferem direitos básicos da população, especialmente o direito à vida e à segurança. Fazem com que crianças e famílias percam dias de escola e de trabalho, compromissos médicos e de lazer. Transformam as casas em verdadeiros bunkers, onde máquinas de lavar roupa e pequenos banheiros tornam-se escudo e esconderijo contra as balas.

Em 2019 foram realizadas 41 operações policiais nas favelas da Maré, matando 42 pessoas e mantendo as escolas fechadas por 35 dias. Em 2023, foram 27 operações, com 39 mortes causadas por arma de fogo e 15 dias sem aula. Os dados foram levantados pelas organizadoras do livro, Ananda Luz e Isabel Malzoni, autodenominadas escribas (uma vez que a autoria da obra é atribuída às crianças da Maré), e Adelaide Rezende, pesquisadora da primeira infância na ONG Redes da Maré, parceira no projeto.

Por trás das estratégias de defesa e proteção, relatadas em frases curtas e simples pelos autores, está um imenso medo que ronda a vida da população. Crianças com medo de morrer, com medo pela vida de seus pais e de seus amigos. Crianças com medo de não realizar sonhos porque são privadas da escola. Crianças que não entendem porque policiais atiram em meninos e meninas com o uniforme da escola e nem porque atiram sabendo que é um morador na linha do alvo.

O pânico vai além do tiroteio. Policiais invadem casas, reviram tudo, roubam alimentos, agridem. Tudo contado pelas crianças, que arrastam todos os dias preocupações que não lhes caberiam a essa altura da vida e um imenso ponto de interrogação. É difícil entender porque tudo isso acontece. É mais nebuloso ainda o futuro que começa a partir desse cenário.

Mesmo assim elas sonham com o dia em que tudo vai ser diferente, o dia em que elas vão poder BRINCAR em PAZ.

A história que deu origem ao livro

A inspiração para a concepção do livro foi uma iniciativa da ONG Redes da Maré, fundada em 2007 e que atua pelos direitos da população do bairro, composto por 16 favelas e 130 mil moradores. 

Um dos direitos mais ameaçados ali é o da segurança, justamente pelas políticas públicas que deveriam garanti-lo aos cidadãos.

Em 2019, durante o mandato do governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel, houve o risco de extinção do dispositivo legal que regulamenta as operações policiais na favela. Conhecido como ACP, trata-se de uma ação civil pública, judicial, que defende direitos coletivos. Ela foi proposta pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, depois de incentivada pela Redes da Maré. Por meio dela, pede-se que as operações policiais no bairro só aconteçam durante o dia, com a presença de ambulâncias e uso de câmeras pelos policiais, mantendo distância das escolas, entre outras regras de proteção. Seu fim tornaria essas incursões ainda mais perigosas e mortais.

Com o objetivo de mostrar às autoridades que os direitos da população são frequentemente violados, mesmo com um recurso judicial de proteção, a Redes mobilizou os moradores e enviou 1.512 cartas, escritas majoritariamente por crianças e jovens, a juízes e juízas, relatando a vida nas favelas da Maré em meio às operações policiais. As cartas também exigiam a concretização dos demais direitos desses cidadãos como o de ir à escola, o de brincar, o de viver.

A ideia deu certo e a ACP não foi retirada. O livro, por sua vez, recupera esse contexto e pretende que a voz dessas crianças alcance mais pessoas, jogando luz a mais um dos problemas urgentes que o Brasil tem a resolver.

Informação adequada sobre violação de direitos é passo necessário e fundamental para a reflexão, mobilização de recursos humanos e materiais e propostas de solução.

A partir do relato das crianças da Maré, como crianças que vivem longe do contexto das operações policiais poderiam ajudar? Que ideias proporiam para tirar meninos e meninas da mesma idade e com os mesmos sonhos dessa situação? Como se sentem ao imaginar que poderiam viver esse mesmo cotidiano? O que poderiam fazer hoje e no futuro pela igualdade de direitos de crianças e adolescentes? Sua filha, neto, aluna ou sobrinho conhece o Estatuto da Criança e do Adolescente? Se ele se unisse a um grupo de amigos para redigir a Declaração Universal dos Direitos das Crianças, quais seriam os tópicos principais? Indo além, o que proporiam para que esses direitos tivessem seu exercício garantido?

Como sempre, cada obra abre espaço para uma longa conversa que pode tomar rumos filosóficos e/ou práticos. Sobretudo, são uma oportunidade de plantar uma semente que queremos ver germinar. Sempre com a esperança de que as futuras gerações sejam mais sábias, mais generosas, mais solidárias e conjuguem, especialmente na prática, o verbo cuidar.    

As organizadoras explicam em detalhes, no final do livro, todo o contexto e a metodologia para reunir e organizar as manifestações das crianças. A receita de direitos autorais será destinada à Redes da Maré para investimento em projetos que envolvam crianças e segurança pública.