
A roupa que você está usando ou o celular ao seu lado são frutos de uma cadeia complexa e invisível. Uma peça de roupa pode envolver algodão colhido em um país, produção de tecido em outro, costura em uma terceira região e distribuição por uma empresa global. Um aparelho eletrônico pode incluir metais raros extraídos na África, componentes fabricados na Ásia e montagem final na América Latina.
Essas redes de produção conectam agricultura, mineração, indústria, transporte, energia e tecnologia e sustentam o funcionamento da economia global. Em alguns casos, uma única empresa pode ter milhares de fornecedores espalhados por diversos países. E é justamente nesse emaranhado que se concentram as maiores lacunas da sustentabilidade corporativa.
Durante muito tempo, a resposta foi ampliar controles: criar políticas, aumentar exigências, multiplicar auditorias. Mas isso não é suficiente diante da complexidade e velocidade do mundo atual. É preciso inteligência e poder de predição com alta precisão. Esse olhar para o futuro por meio de dados, que o gestor não teria capacidade de analisar rapidamente sem tecnologia, é precisamente o que a inteligência artificial (IA) oferece.
A IA está transformando a forma como empresas gerenciam suas cadeias de fornecimento, especialmente no relacionamento com fornecedores. Algoritmos analisam volumes massivos de dados para prever rupturas, antecipar variações de demanda, avaliar o desempenho ambiental e social de parceiros e identificar riscos ocultos.
Com IA, é possível criar sistemas de pontuação que integram histórico de conformidade, padrões de ESG, localização geográfica, impactos climáticos e reputação pública. Isso dá às empresas um novo patamar de tomada de decisão baseada em evidências.
Com o apoio dessas tecnologias, torna-se possível enxergar melhor o que antes era invisível, antecipar riscos, cruzar dados ESG com desempenho financeiro e transformar a gestão de fornecedores em uma alavanca estratégica.
Pesquisas começam a mostrar esse efeito na prática. Um estudo publicado na revista Sustainable Development em abril de 2024, liderado por Sam Aflaki, professor de sustentabilidade e cadeia de fornecedores da HEC Paris, analisou iniciativas que combinam dados operacionais e indicadores ambientais para orientar compras mais limpas e resilientes em cadeias complexas, reforçando que IA aplicada a decisões de compra pode reduzir riscos e emissões ao mesmo tempo em que melhora o desempenho de fornecimento.
Um gestor de suprimento pode usar IA para avaliar o potencial de rendimento por hectare das fazendas de sua cadeia produtiva a longo prazo, tomando em conta múltiplos fatores como saúde do solo, precipitações, uso de insumos sintéticos ou bio-insumos, temperatura, mudanças climáticas etc. Isso ajuda a construir cenários em função da variabilidade de cada fator e prever quais fornecedores poderão acompanhar as demandas futuras da empresa.
Uma empresa do setor agroalimentar pode cruzar dados de origem e logística com alertas sobre uso de pesticidas ou práticas ilegais de trabalho. Uma operadora logística pode otimizar rotas para reduzir emissões e evitar zonas ambientalmente sensíveis. Esses casos ilustram como a IA converte dados dispersos em insights operacionais que ampliam desempenho em sustentabilidade e no financeiro.
Isso é especialmente relevante diante do alto custo envolvido na gestão de redes globais de fornecimento. Monitorar impactos ambientais, garantir padrões sociais mínimos e atender exigências regulatórias se tornaram tarefas cada vez mais caras e complexas.
Tecnologias como inteligência artificial, internet das coisas (IoT) e blockchain têm o potencial de reduzir significativamente esses custos, ao automatizar processos, eliminar redundâncias e aumentar a precisão das informações coletadas. O relatório da McKinsey, “Generative AI in operations: Capturing the value”, sobre IA generativa em operações de compras, confirma esse potencial.
Ferramentas baseadas em IA generativa também podem ajudar fornecedores de menor porte a cumprir exigências de grandes compradores, com assistentes digitais que automatizam a leitura de normativos e o preenchimento de relatórios ESG.
A IA ajuda a cruzar dados de diferentes fontes, identificar padrões e antecipar riscos. Com isso, empresas podem deixar de atuar apenas de forma reativa e passam a priorizar fornecedores mais sustentáveis, com mais controle, responsabilidade e transparência. Ao adotar uma gestão estratégica de fornecedores, estruturam relações de longo prazo, mais colaborativas e orientadas por desempenho, inovação e valor compartilhado.
Empresas que adotam essas ferramentas saem do campo da reação para o da antecipação. Passam a tomar decisões com base em dados, antecipando riscos e identificando oportunidades de transformação. Cadeias éticas, rastreáveis e resilientes se tornam ativos estratégicos, tanto para o mercado quanto para a sociedade.
Ao combinarem objetivos de sustentabilidade com cadeias mais eficientes e competitivas, essas empresas demonstram que é possível integrar benefícios sociais e ambientais aos resultados financeiros, gerando valor compartilhado de forma concreta e mensurável.
A transformação, contudo, requer condições técnicas sólidas, como dados confiáveis, governança robusta e integração tecnológica consistente. Ela também depende do fortalecimento das competências de liderança: visão sistêmica do negócio, capacidade de análise preditiva e domínio da construção de cenários, garantindo decisões estratégicas mais precisas e sustentáveis no médio e longo prazo.
Mesmo sendo soluções tecnologicamente avançadas, elas estão cada vez mais acessíveis tanto em termos de custo quanto de facilidade de uso. Centenas de empresas e startups oferecem soluções de baixo custo para problemas de diversas naturezas. As empresas podem aproveitar o potencial de IA sem estruturas sistêmicas pesadas como ERPs, o que permite a empresas de diferentes portes avançarem com ferramentas modulares e colaborações estratégicas.
Nesse contexto, as grandes empresas têm um papel fundamental de catalisadores. Elas podem apoiar seus fornecedores na adoção de tecnologias, compartilhar infraestrutura, oferecer capacitação e promover padrões comuns de monitoramento e transparência. O ponto de partida não é tecnológico, é uma decisão de liderança e compromisso com a transformação da cadeia como um todo.
Se no passado a gestão de fornecedores era vista como uma atividade operacional, hoje ela está no centro da estratégia. Não apenas por sua relevância ambiental e social, mas porque pode ser ali onde se tomam grandes decisões de inovação, competitividade e resiliência.
*Regina Magalhães é especialista em sustentabilidade, transformação digital e finanças sustentáveis. Atuou em organizações como Microsoft, IFC, Schneider Electric e Johnson Controls, e tem doutorado em Ciências Ambientais.
*Cyrille Bellier é diretor executivo e sócio-fundador das consultorias e think tanks Rever Consulting e Utopies. Atua com sustentabilidade desde 2003, com foco em cadeias sustentáveis, direitos humanos e clima. É conselheiro do negócio social Pé de Feijão e líder da Comissão de Bioeconomia da Câmara de Comércio França-Brasil.
*Philippe de Grivel é um executivo senior de compras e supply com +25 anos de experiência internacional trabalhando para diversas multinacionais no setor de foodservice.