
Popularizada pelo ecólogo Garrett Hardin nos anos 60, a Tragédia dos Comuns descreve uma cena sombria, fruto da miopia humana ao considerar cenários de médio e longo prazo. Muito embora os recursos naturais sejam bens comuns, idealmente compartilhados e usufruídos por todos, os indivíduos agindo exclusivamente de acordo com seus próprios interesses podem explorá-los até que se esgotem. Nesse caso, o prejuízo é coletivo.
Como reverter essa lógica perversa? Promovendo a sua manutenção e recuperação.
Como um negócio pode ser positivo para a natureza, fazer sentido econômico para empreendedores e ainda promover vantagens para todos? Estamos nos referindo à restauração de ecossistemas, que pode representar uma antítese da Tragédia dos Comuns.
Ser positivo para a natureza é, em primeiro lugar, conservá-la. Quando a degradação já ocorreu, devemos restaurar os ecossistemas. Por meio dessa atividade é possível recuperar ambientes degradados e, consequentemente, minimizar os impactos das mudanças climáticas, a perda de biodiversidade, os incêndios antropogênicos e preservar recursos de água doce.
A restauração é um processo complexo e lento, com dimensões ecológicas e socioeconômicas e, portanto, afinada com a agenda ESG corporativa. Restaurar beneficia pessoas, negócios e países, além dos ganhos ambientais. Para viabilizar a restauração como negócio, é necessário dar atenção para a base da cadeia que a sustenta, onde estão os viveiros florestais produtores de sementes e mudas nativas.
Estamos na Década da Restauração de Ecossistemas proposta pelas Nações Unidas, e o Brasil se comprometeu a recuperar 12 milhões de hectares até 2030. Para alcançar esse objetivo é urgente enfrentar alguns gargalos. As mudas são imprescindíveis para a restauração mais rápida e de melhor qualidade, maximizando o sequestro e armazenamento de carbono, a produção de água e a conservação da biodiversidade. No aspecto socioeconômico, a produção de mudas é um negócio com diversos benefícios, incluindo geração de empregos e impostos.
Após décadas de pesquisas, não restam dúvidas de que a riqueza de espécies da flora influencia a quantidade da fauna local e tem relação direta e positiva com o bom funcionamento dos ecossistemas. Quanto mais rica em espécies da flora for uma área, melhor será o funcionamento daquele ecossistema. E quanto melhor o funcionamento dos ecossistemas, maior também será sua capacidade de sequestrar e armazenar carbono, entre outros benefícios.
No entanto, no Brasil restauramos quase sempre com o plantio de poucas espécies de árvores e, na maioria das vezes, sem considerar outras plantas além das arvores, impactando o funcionamento e a longevidade das áreas recuperadas.
A produção de sementes e mudas nativas é uma atividade que merece atenção especial. Produzir com diversidade de espécies tem custo elevado e exige investimentos de longo prazo: as árvores matrizes ficam distantes entre si na floresta, e a disponibilidade de sementes nas árvores não segue ciclos previsíveis. Muitas vezes a floração e frutificação levam anos para acontecer e, sem a parte reprodutiva, é impossível obter sementes e identificar espécies.
Além disso, o sistema de preços funciona mal nesse setor, prejudicando a qualidade da restauração e levando viveiros à falência. O mercado não absorve os custos e a oferta é conduzida pela demanda, usualmente motivada por obrigações legais de restaurar com pouquíssimas exigências, pressionando produtores a reduzirem ainda mais os preços de suas mudas.
Para recuperar vegetação nativa com qualidade é preciso fortalecer os viveiros e mudar os formatos dos projetos de restauração, priorizando a qualidade que depende da riqueza de espécies.
O setor de produção de sementes e mudas nativas enfrenta dificuldades no acesso ao crédito e financiamento. A atividade depende de capital de giro e tem alto custo operacional. Taxas, prazos e garantias inadequadas são gargalos para o seu desenvolvimento. A ausência de contratos com prazos mais longos piora esse cenário, pois não há nenhuma previsibilidade na demanda que ampare investimentos nos viveiros.
Soluções podem incluir garantias de demanda, linhas de crédito direcionadas, adequações no Plano Safra, capacitação de agências bancárias, incentivos fiscais para induzir o crescimento sustentável, além do apoio filantrópico disponível. Mesmo nesse cenário, no fim de 2024, o Estado de São Paulo resolveu descontinuar a isenção de tributos que representava um dos poucos incentivos vigentes para essa atividade.
A produção de sementes e mudas nativas no Brasil se encontra em um espaço institucional inadequado, com a regulação do Ministério da Agricultura e Pecuária e Abastecimento (Mapa). As atividades de restauração de ecossistemas e a conservação e monitoramento da fauna silvestre não fazem parte do mandato principal dessa autoridade, que é fortalecer a agricultura e a pecuária.
A regulação sobre o restauro também precisa reconhecer o papel limitado do sistema de preços e da competição no atingimento de metas, dado que a qualidade também depende da colaboração entre os viveiros. É importante que os incentivos sejam promovidos na direção correta nos editais e nas políticas públicas, fazendo com que proprietários de terras optem pela restauração das suas áreas degradadas.
Outra lacuna na regulação é a necessidade de estabelecer parâmetros comprometidos com a restauração de qualidade, como a riqueza de espécies. Obrigações que são custosas para os viveiros, incluindo a prestação de informações de pouca ou nenhuma utilidade, também devem ser eliminadas.
Além disso, é urgente pensar em abordagens regulatórias de cunho socioeconômico, inspiradas, por exemplo, nas ações de defesa do emprego e da estabilidade monetária promovidas pelo Banco Central. A constituição de fundos para assegurar a demanda por mudas e a oferta de garantias aos produtores também são algumas alternativas.
Um desafio superado é a união de diferentes setores da sociedade, que passaram a enxergar a restauração como objetivo comum, como revela por exemplo a filiação dos autores deste artigo. Outra boa notícia é a clareza sobre problemas e soluções para essa atividade e os potenciais ganhos ecológicos e econômicos, que têm relação direta com uma das maiores vantagens do nosso país, a nossa incomparável biodiversidade.
Superar os desafios para a restauração é mais do que necessário, é fundamental para que o Brasil avance para a vanguarda da economia regenerativa, transformando nossos passivos ambientais em ativos econômicos e sociais.
*Carlos E. V. Grelle é professor do Departamento de Ecologia da UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro
*Iara M. Borges é engenheira florestal e secretária executiva da Nativas Brasil
*Rodrigo Ciriello é diretor presidente da Nativas Brasil e fundador do viveiro Futuro Florestal
*Renato Ximenes de Melo é sócio da XiCa Advogados e diretor da Nativas Brasil