
Se queremos de fato, como país, direcionar nosso desenvolvimento para a economia de baixo carbono, unindo-a à circularidade e bioeconomia, este é o momento de tratar da precificação de carbono com olhar sistêmico.
Devemos priorizar nossas qualificações como país tropical megadiverso, com capital natural ainda disponível e um oceano de oportunidades em soluções baseadas em natureza (SBN) a fim de canalizar capital para financiar nossa transição econômica.
Isso significa que a gestão da emissão dos gases de efeito estufa, impulsionada pelo Plano Clima e pela precificação de carbono via Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE), precisará ser verdadeiramente colaborativa entre governo e setor privado, descolando dos modelos até então vigentes, privilegiando a interoperabilidade do mercado regulado com o mercado voluntário e incentivando investimentos em soluções baseadas em natureza.
Essa é nossa grande chance de atrair capital resiliente, qualificado e de longo prazo para projetos com múltiplos benefícios: mitigação robusta de emissões, preservação e restauração de ecossistemas, geração de renda e desenvolvimento de comunidades locais.
Se aproveitarmos o momento, criaremos no Brasil um arranjo singular: um mercado regulado que impulsiona o voluntário e uma precificação de carbono que multiplica impactos positivos sociais e econômicos, criando um círculo virtuoso.
Vocação e vantagem competitiva
Para a gestão de parte das emissões, muitas jurisdições dependem de tecnologias caras, com eficácia de permanência ainda a ser provada e sem escala – como captura e armazenagem de carbono (CCS), captura, armazenagem e utilização de carbono (CCUS), captura e armazenagem de carbono biogênico (Bio-CCS) e captura direta de ar (DAC).
O Brasil possui capital natural, mercado voluntário de carbono florestal de conservação (com projetos privados e programas jurisdicionais) e de restauro e mercado de carbono agrícola em evolução com capacidade técnica instalada para desenvolver projetos de alta integridade.
Na gestão de emissões, esses projetos de SBN oferecem:
- custos competitivos por tonelada de CO₂ evitada/removida quando comparados com as tecnologias hoje disponíveis;
- cobenefícios ambientais como conservação/restauração da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos;
- benefícios sociais diretos, fortalecendo economias locais e cadeias produtivas sustentáveis;
- potencial de atração de capital verde internacional que busca retorno socioambiental e financeiro.
Gatilho regulatório
O cenário do mercado voluntário de carbono está prestes a mudar. O gatilho é a regulação. Essa é a comprovação da materialização do risco climático de transição no Brasil, que acaba se tornando nossa super oportunidade de liderar a transição global para a economia de baixo carbono.
De um lado, temos a regulamentação do SBCE em andamento no Ministério da Fazenda. De outro, a recém-concluída consulta pública da Estratégia Nacional de Mitigação, com sete planos setoriais, incluindo o plano da indústria.
Na regulamentação do SBCE, teremos o detalhamento da interoperabilidade entre o mercado voluntário e o regulado (via registro de créditos de carbono com metodologia credenciada no registro geral, transformando-os em CRVEs). Isso impulsionará a liquidez dos projetos no mercado voluntário pela nova demanda das indústrias reguladas (operadores).
No plano setorial da indústria, uma das ações estruturantes identificadas é o financiamento para desenvolvimento e adoção de soluções de remoção de GEE, incluindo as florestas. O papel estratégico das florestas é destacado, haja vista seu potencial multifuncional ao atuarem como sumidouros de carbono e fornecedoras de matéria-prima renovável para fins industriais e energéticos.
Isso pode ser altamente estratégico, desde que a intenção não seja vincular florestas exclusivamente para projetos de Bio-CCS nas indústrias cabíveis. Temos de incluir projetos de restauro, lado a lado com as tecnologias, como alternativa para todas as indústrias englobadas nesse plano setorial. Aliás, quem sabe não conseguiríamos expandir e ter também como alternativa carbono gerado pelo agronegócio, seja em solo seja pelas diferentes culturas?
O desafio é assegurar que a versão final do plano setorial esclareça que essas alternativas valem para todas as indústrias, quem sabe até as incluindo na lista de ações impactantes per se, além de constarem na lista de ações estruturantes dependentes de financiamento.
No passo seguinte, o desafio será assegurar a integridade das nossas soluções baseadas em natureza, via metodologias de monitoramento, relato e verificação (MRV) robustas, transparentes e confiáveis, para comprovarmos a redução das emissões de gases de efeito estufa em nossa contabilidade nacional. Assim como o uso das tecnologias também demandará MRV robusta, confirmando sua eficácia e permanência.
Colocando soluções baseadas em natureza em posição de igualdade com tecnologias para gerenciar as emissões, teremos grandes chances de liderar a transição econômica.
Europa: até quem sempre resistiu mudou o discurso
A União Europeia não considerava as soluções baseadas na natureza como opção para gestão das emissões – por razões óbvias. A alternativa discutida, aceita e financiada sempre foi a tecnológica. Mas estamos diante de uma potencial grande mudança, qualificada como “flexibilização”.
Na proposta para a meta climática de 2040, visando reduzir 90% das emissões líquidas em relação a 1990, a UE colocou os créditos de carbono na agenda. A partir de 2036, o bloco poderá utilizar créditos de carbono internacionais de alta qualidade (conforme o Artigo 6 do Acordo de Paris), até o equivalente a 3% de suas emissões líquidas em 1990.
Esses créditos deverão vir de atividades transformadoras e confiáveis em países terceiros, compatíveis com o objetivo do Acordo de Paris e contribuindo com a criação de cadeias de valor net zero. A utilização desses créditos dependerá de regras rigorosas estabelecidas pela legislação da UE, incluindo critérios sobre origem, qualidade, tempo e uso. Mas a proposta, em análise pela Comissão Europeia e pelo Parlamento Europeu, não permite o uso dos créditos internacionais para conformidade no sistema de comércio de emissões europeu (EU ETS).
Nosso país e os setores relevantes precisam se mobilizar para que os CRVEs atendam às exigências internacionais.
Aliás, quem sabe, caberia até mesmo um advocacy de peso para aceitação dos créditos internacionais nas metas das indústrias reguladas pelo EU ETS?
Hora de agir: setor privado e governo
Para que esse círculo virtuoso se materialize, precisamos do setor privado e do governo alinhados para tomarmos todas as ações internas necessárias e atuar, com eficácia, no advocacy internacional e no branding que nossas SBNs merecem.
Nosso Plano Clima e a regulamentação do SBCE têm o grande potencial de:
- promover a liquidez de créditos de carbono agrícolas e florestais – oriundos de projetos privados e de programas jurisdicionais, conferindo a eles integridade e credibilidade;
- impulsionar a escala de projetos/programas de carbono de alta integridade no território nacional;
- atrair financiamento internacional ‘verde’, com capital resiliente, qualificado e de longo prazo;
- redirecionar fluxos financeiros nacionais e internacionais para mitigação com inúmeros cobenefícios ambientais, sociais e econômicos;
- impulsionar a valoração de capital natural, abrindo caminhos para que novos ativos ambientais entrem no jogo, a exemplo dos créditos de natureza/biodiversidade.
Esse modelo transforma nossa vantagem comparativa em diferencial competitivo, reforçando e tangibilizando a capacidade do Brasil para ser o fornecedor global de soluções climáticas e de natureza integradas.
As regras estão sendo escritas neste momento. Se não ocuparmos o espaço que nos cabe na liderança das soluções baseadas em natureza, outros modelos – menos alinhados à nossa realidade e vocação – serão impostos. Precisamos ser vocais e agir.