A pobreza é como uma doença contagiosa: enfraquece, isola e chega a matar. Não necessariamente o coração deixa de bater. Mas a pessoa pobre deixa de viver. Sobrevive com migalhas materiais e morre um pouco por dia ao perder dignidade e autoestima.
Em um mundo formatado para acolher apenas os que têm algo para dar, onde a moeda de troca é o dinheiro ou o favor, deixam de pertencer os que não têm nenhum recurso: os pobres. Eles podem ser imigrantes, refugiados, deficientes – pessoas nas mais diversas condições.
No Brasil, são majoritariamente negros. Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgados no final de 2022 mostram um aumento de 48,2% do número de pessoas vivendo em situação de extrema pobreza em 2021. São quase 6 milhões de pessoas que passaram a viver com renda mensal per capita de até R$ 168 por mês. A proporção dos negros nesse montante é o dobro da de brancos.
A precariedade econômica é causa e consequência. Consequência da história e de sucessivas decisões de Estado que foram excluindo os negros da sociedade e afastando-os de seus direitos como cidadãos. Causa para outros aspectos da vida – de negros ou não – tornarem-se também precários: a educação, o trabalho, a insegurança, a imensa dificuldade (quase impossibilidade) de acesso a oportunidades, preconceito, descaso e ainda mais exclusão.
Longe de serem lineares, os problemas vão se acumulando e tornam-se um imenso imbróglio, cuja solução (bastante complexa) passa pela transformação social do país. Afinal, desigualdade, racial ou não, é problema de todos.
Não é incomum, infelizmente, que se crie em relação ao pobre um sentimento de desprezo, que ganha contornos de medo, rejeição, aversão e até mesmo ódio.
A filósofa e professora espanhola Adela Cortina achou pertinente dar um nome para esse sentimento. Foi ao dicionário grego, pinçou aporos (pobre) e fobia (medo/ódio), e batizou: aporofobia. Em 2017, a palavra passou a integrar o dicionário espanhol oficialmente. Levou 22 anos para que sua proposta à Academia Real Espanhola, instituição que protege e regula o uso da língua espanhola, fosse aceita.
No Brasil, foi o Padre Julio Lancellotti, pedagogo e responsável pela paróquia de São Miguel Arcanjo, no bairro da Mooca, em São Paulo, que abraçou o termo, depois de quase toda uma vida de trabalho dedicada aos miseráveis.
Ele coordena a Pastoral do Povo de Rua, iniciativa da igreja católica para atender moradores de rua. Ganhou aliados e inimigos em 2021, ao quebrar a marretadas blocos de paralelepípedo instalados sob viadutos da zona leste da cidade, uma medida da prefeitura, sob a gestão de Bruno Covas (PSDB). Classificou a decisão como um exemplo de arquitetura hostil e aporofóbica. “Pedras usadas para construir obstáculos em vez de casas”, lamentou ele.
A experiência com o tema e a urgência em desconstruir uma sociedade aporofóbica o levaram a propor à Companhia das Letrinhas, selo infantil da editora Companhia das Letras, a produção de uma obra específica sobre aporofobia para o público infantil. Afinal, informação (e ESG) vêm de berço.
Ele já havia indicado, durante uma missa, Os Invisíveis, de Tino Freitas e Odilon Moraes (recomendado por esta coluna em março de 2022), que fala sobre o poder de um menino de enxergar pessoas ignoradas pela sociedade.
Uma palavra, um sentimento e alguns livros
Blandina Franco e José Carlos Lollo foram os autores convidados para desenvolver o projeto e fizeram dois livros: Aporofobia, publicado dentro da coleção Canoa (de livros a preços acessíveis), e Os Pombos.
Em Aporofobia – Você Não Conhece a Palavra, Mas Conhece o Sentimento (2023), uma família de moradores de rua se depara com a arquitetura hostil da cidade enquanto procura um lugar para ficar. Aos poucos, vão sendo abatidos e sentindo o peso das palavras usadas para se referir a eles.
As opiniões e as explicações a respeito de quem são, do que sentem e do que fazem estão carregadas de preconceito, ignorância e ódio. As palavras vão caindo literalmente sobre eles, como pedras pesadas e obstáculos intransponíveis, dos quais é difícil se livrar.
A obra foi o caminho encontrado pelos autores e por Lancellotti, que atuou como consultor do trabalho, para explicar para crianças o significado de uma palavra difícil. Serve também para ajudar leitores de todas as idades a entender e a ser empático com os sentimentos dos moradores de rua frente ao que enfrentam todos os dias, tratados como potencialmente perigosos e inimigos. Neste projeto, a arte imita a vida e os personagens são vistos como indesejáveis, pessoas a serem eliminadas.
Lancellotti se apoia na fala de Cortina ao explicar que dar um nome a esse sentimento é fundamental para que se possa transformar a realidade. Ao se identificar algo, é possível reconhecer sua presença, tomar uma posição e agir para sua conservação ou eliminação, explica a filósofa em uma conferência TEDx.
Segundo ele, aprendemos a pensar e a nos socializar de maneira aporofóbica. As crianças crescem nesse ambiente, ouvindo e repetindo. “A aporofobia tem uma dimensão pessoal e social: reconhecê-la em mim é uma forma de combatê-la fora de mim e em mim”, afirma o padre, em bate-papo organizado pela editora em seu canal de vídeos na internet. “A aporofobia é um sentimento que sedimenta a desigualdade: os livros são britadeiras para quebrar esse cimento”, diz.
Os Pombos (2023), por sua vez, retrata o cotidiano de moradores de rua em uma cidade por meio de uma metáfora. Com uma ilustração forte, impactante (e lindíssima), mostra que a necessidade de quem convive com o morador de rua é sempre a de afastá-los. Eles, de seu lado, esperam ser vistos como quem são: pessoas com sentimentos. Ao negar esses sentimentos, nega-se sua dignidade e sua humanidade.
No próximo dia 10 de dezembro, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela ONU (Organização das Nações Unidas) em 1948, faz 75 anos. O primeiro parágrafo de seu preâmbulo, reconhece “a dignidade inerente a todos os membros da família humana e seus direitos iguais e inalienáveis como fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.
O artigo primeiro do documento reforça: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade em direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.
Quantos anos vamos levar para passar do papel à ação?
Obs: Aquele apoio de sempre para os profissionais independentes: além de Aporofobia e Os Pombos, a Editora Draco, especializada em quadrinhos, apoiou com uma campanha de financiamento coletivo a produção do livro Pobrefobia – Vivências das ruas com Padre Júlio Lancellotti. A meta de captação de recursos foi ultrapassada, e o Padre Julio Lancellotti distribuiu 500 exemplares para moradores de rua. Mesmo com a campanha encerrada, a editora informa que pedidos podem ser feitos por email (editoradraco@gmail.com).