A tecnologia está mudando o mundo em um ritmo acelerado. Hoje nós conseguimos, com alguns toques de dedo, consultar se temos sintomas de alguma doença, gerir e checar nossa saúde financeira, ser lembrados do que comer e beber, fazer atividade física acompanhados de um profissional e, claro, também comprar itens de necessidade básica e recebê-los em casa.
Para milhões de pessoas, essas mudanças significam mais rapidez e melhores condições de vida, possibilitando mais organização, segurança e tempo com a família. Eu faço parte desse grupo e me mantenho em casa há mais de 3 meses realizando compras de mercado e restaurante pela internet, em apps como Rappi, iFood, UberEats.
Para outros milhões de pessoas, os avanços tecnológicos, da maneira como estão sendo feitos neste momento, significam uma barreira maior de acesso a melhores empregos. Afinal, quem tem mais treinamento e familiaridade com a tecnologia é quem tem oportunidades melhores de educação também, certo?
Também significa uma piora no tradeoff, isto é, nas escolhas disponíveis — “entrego CV para arrumar emprego formal no meio de uma pandemia e crise econômica ou me cadastro logo num app como entregador para ganhar algum dinheiro agora?”.
Por fim, também significa uma maior exposição aos riscos de saúde. Pois, se é necessário ter demanda por compras no app, também é necessário ter mais humanos fazendo as entregas, que ainda — repito, ainda — não foram robotizadas.
Ao mesmo tempo, temos visto uma verdadeira revolução na forma de se pensar negócios e como eles interagem com o resto da sociedade, com o surgimento dos conceitos de capitalismo consciente, negócios de impacto social e investimentos socioambientais.
Mas eu não estou aqui para catequizar você em uma nova modalidade de negócio ou investimento. Estou aqui para te dizer que todo negócio tem impacto social e ambiental e que nós, cidadãos, consumidores, empreendedores e investidores, temos que encarar de frente o nosso impacto e nos responsabilizar por ele.
Neste exato momento, o impacto de chancelarmos o serviço dos aplicativos de entrega é ambíguo: estamos gerando utilidade para nós mesmos e estamos avançando na adoção de tecnologia, mas não estamos avançando proporcionalmente na geração de renda e na segurança de quem está na linha de frente para tornar nossa vida mais fácil.
E onde entra a greve #BrequeDosApps nisso?
O movimento de paralisação que está acontecendo hoje tem tudo a ver com a ambiguidade do impacto dos apps de entrega: em meio a tantos clientes satisfeitos por terem como comprar comida sem sair de casa, a rotina dos entregadores desses apps inclui, em média, mais de 9 horas de trabalho por dia, sendo que a maioria (57%) labuta sete dias por semana para receber, em média, R$ 936 por mês.
Numa pesquisa recente, a maioria dos entrevistados (59%) relatou ainda queda na remuneração. A redução ocorreu mesmo para aqueles que mantiveram o mesmo número de horas trabalhadas.
Tudo isso somado à exposição à covid-19, que, vocês bem sabem, tem efeitos completamente desiguais dependendo da sua faixa de renda, região de moradia e acesso a serviços de saúde.
Não pense você que eu estou defendendo a greve na inocência de acreditar que é possível mudar a equação sem aumentar custos para as grandes empresas de tecnologia ou para os clientes. É exatamente o contrário.
Eu acredito que quem deve compartilhar a responsabilidade de manter um trabalho seguro e digno a quem busca uma fonte de renda como a das entregas são justamente as empresas de tecnologia e seus clientes.
E vou te dar 3 razões para isso:
1 – Nossa posição financeira e social nos permite
Juntas, as classes A e B são responsáveis por 83% dos pedidos de delivery por app. Lembrando que a classe A é composta por pessoas com renda acima de 20 salários mínimos e a classe B é composta por pessoas com renda de 10 a 20 salários mínimos. Também tem destaque a regularidade no consumo: 56% dos clientes consomem delivery semanalmente.
Isso significa que quem é cliente dos apps de entrega tem uma posição financeira claramente muito mais confortável que quem é entregador nos mesmos apps, que em muitos casos não atinge nem 1 salário mínimo no mês.
Olhando o contexto macroeconômico, a desigualdade no Brasil já vinha aumentando nos últimos anos e a pandemia combinada com recessão em que entramos tem efeito devastador e desproporcional para classes mais baixas. De acordo com FGV Social, no agregado, os 50% mais pobres do Brasil tiveram uma redução de 6,3% de um ano para outro, enquanto que os 10% mais ricos tiveram um aumento de 0,8%.
Eu preciso te dizer que para estar entre os 10% mais ricos do Brasil, um país extremamente desigual, basta ganhar mais que 3,5 salários mínimos.
Então, agora que você sabe exatamente que lugar você ocupa no contexto financeiro e social do Brasil e qual posição você ocupa no modelo de negócio dos apps (adivinha: cliente!), você diria que está mais ou menos seguro para expressar sua opinião sobre as condições dos entregadores?
É justo que os mais vulneráveis encarem sem apoio nenhum a jornada por condições dignas quando estão prestando serviços para nós?
2 – Nosso futuro depende de como encaramos a adesão à tecnologia no presente
Por “nosso futuro” eu quero dizer o futuro da desigualdade econômica e social no nosso país. Sabe por quê?
Porque o aumento ou a diminuição da desigualdade afeta a vida de todos, influenciando nos índices de educação, saúde, segurança e financeiro.
Não adianta celebrar um futuro lindo e cheio de possibilidades tecnológicas se o seu comportamento de consumo vai gerar mais desigualdade no futuro, porque isso também vai te afetar. Não é uma questão de ‘karma’ ou ‘compensação universal’, é uma questão de racionalidade econômica e estabilidade social.
De acordo com o Fórum Econômico Mundial, em 10 anos acontecerão as seguintes mudanças:
- 50% dos trabalhos serão alterados pela automação.
- 9 em cada 10 empregos exigirão habilidades digitais.
- Pessoas jovens, pouco qualificadas e vulneráveis precisam de ajuda com a qualificação.
Voltando aos entregadores de app, 50% têm menos de 22 anos e 71% são negros ou pardos. O que você acha que vai acontecer se continuarmos de braços cruzados fingindo que o problema não é conosco?
Se nós, como clientes e sociedade, não fizermos nada para exigir melhores condições de emprego, inclusão e qualificação tecnológica para a população brasileira, em breve as empresas de tecnologia vão substituir os entregadores por robôs e nós TODOS estaremos com um problema ainda maior de pobreza e desigualdade.
3 – Devemos dar o exemplo se quisermos orientar empreendedores e investidores do futuro
Trabalho no ecossistema de startups, vejo diariamente empreendedores, investidores e entusiastas da tecnologia destacando as maravilhas que ela pode fazer por nós e me considero também uma entusiasta da tecnologia. Só que eu não quero que meu apreço pela tecnologia e pelo empreendedorismo me ceguem sobre o que realmente importa: os seres humanos.
No mundo empreendedor é comum dizer que o Mínimo Produto Viável precisa ser ‘ok’ o suficiente para testar uma hipótese de solução, mas não elaborado a ponto de ser custoso demais. Na maior parte das vezes é um ser humano ali ‘por trás’ da interação da tela com o cliente que está manualmente colocando a proposta de solução de pé antes mesmo de existir uma tecnologia que a torne escalável.
Seres humanos são os criadores da tecnologia, são os que estão por trás dela desvendando e priorizando quais problemas devem ser solucionados com a ajuda dela. Mas, neste momento, a maior parte dos seres humanos que têm acesso a qualificação, ferramentas de negócio e capital para sequer testar soluções é branca e de alta renda.
Eu sei que todo mundo quer olhar para mérito “sem olhar cor de pele ou classe social”. Eu também quero, mas nós só vamos chegar nesse ponto se construirmos um cenário de oportunidades mais igualitárias, onde todos possam se desenvolver a partir de onde estão. E isso passa por defender os interesses de quem nos presta serviço, pois uma jornada exaustiva, sem segurança mínima e sem seguro de vida é na prática um impeditivo para o desenvolvimento individual, e não tem ‘meritocracia de fachada’ que solucione isso.
O modelo de desenvolvimento que nos trouxe até aqui talvez não seja mais o adequado para nos levar daqui para o futuro. Se nós não empregarmos uma lógica diferente com as coisas que consumimos como podemos esperar que as coisas melhorem para todos?
Apoiar o movimento dos entregadores de app é também enviar uma mensagem para empreendedores e investidores dizendo:
Eu não quero uma vida mais fácil se isso custar a vida de muitos. Façam diferente e gerem modelos de negócios que dêem retorno proporcional a todos os envolvidos. Isso exigirá usar a criatividade e iniciativa empreendedora para olhar para a cadeia de valor inteira, não apenas para o cliente.
Para terminar, o mais importante.
Você sabe quais são as principais demandas dos entregadores?
- Aumento do valor mínimo da corrida
- Seguro de roubo e acidente
- Aumento do valor por km percorrido
- Auxílio-pandemia
Você concorda que em qualquer negociação há uma dinâmica de poderes? Como você pretende utilizar o seu poder?
*Itali Pedroni Collini é economista pela USP e diretora de operações no Brasil da aceleradora 500 Startups. TEDx speaker, tem experiência no mercado financeiro, consultoria e investimentos de impacto social. A opinião expressa no artigo é pessoal e não reflete uma posição da 500 Startups.