Com a maior floresta tropical do mundo e uma matriz energética majoritariamente limpa, o Brasil tem vantagens comparativas enormes num mundo de baixo carbono e poderia se tornar a Arábia Saudita do mercado de carbono.
Quantas vezes você já ouviu algo do tipo?
A realidade atual, no entanto, é bem menos superlativa: o país é o sétimo do mundo em geração voluntária de créditos de carbono, atrás de vizinhos muito menores, como Peru e Colômbia.
As razões para esse fosso são inúmeras e o caminho para o desenvolvimento limpo exige diversos passos políticos, econômicos e diplomáticos — uma agenda da qual o Brasil está muito distante, a despeito da urgência imposta pela mudança climática e das inúmeras oportunidades que poderiam surgir a partir da nossa inserção nesses mercados.
Para entrar nesse amplo debate e propor caminhos, no entanto, é preciso entender o bê-a-bá do mercado de carbono, um assunto tão complexo quanto iminente. Para isso, resumimos o assunto em 14 tópicos.
(Você não vai sair daqui sabendo tudo, mas a intenção é que saiba começar a fazer as perguntas certas.)
1. Por que precificar o carbono?
A ideia por trás da precificação do carbono é permitir a internalização do custo das emissões, uma externalidade negativa que traz custos para toda a sociedade. Grosso modo, a lógica é penalizar quem emite mais e premiar quem emite menos (ou sequestra carbono), como uma forma de limpar as economias e mitigar o aquecimento global.
Em teoria, essa precificação tem potencial de direcionar a demanda dos consumidores e investidores para produtos menos intensivos em emissões e estimular investimentos em projetos e tecnologias mais limpas.
2. Atualizando o chip: de Kyoto para Paris
Quando se fala em mercado de carbono, talvez o que você tenha na cabeça seja o que vigorava pelo Protocolo de Kyoto, assinado em 1997 e em vigor desde 2005. Em linhas bem gerais, Kyoto determinou que apenas os países desenvolvidos tinham metas de redução de emissão e, para isso, podiam comprar créditos dos países em desenvolvimento (Brasil incluso, que chegou a emitir bastante créditos na época).
Esse mercado, chamado de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL ou CDM, na sigla em inglês) chegou a ser grande, com contornos globais, tendo a Europa e o Japão como principais compradores, mas colapsou com a crise econômica pós-2008.
Agora estamos sob a vigência do Acordo de Paris, assinado em 2015, em que todos os mais de 190 países signatários têm metas de redução de emissões, as Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDC). Os países em desenvolvimento também têm metas e seu orçamento de carbono. Com isso, os mercados de carbono regulados também se fragmentaram.
3. Existem dois mercados de carbono: o regulado e o voluntário
Antes de mais nada, é crucial entender que há dois tipos de mercado de carbono.
Há os mercados regulados, em que governos — nacionais, estaduais ou regionais — determinam esquemas fechados envolvendo setores específicos. Mais de dois terços do PIB mundial já tem algum tipo de formação de preço desse tipo, da Europa a estados americanos e canadenses, bem como províncias chinesas.
São esses mercados, dos quais o Brasil está apartado, que respondem pela maior fatia do carbono que é negociado no mundo. Hoje, já são mais de 60 iniciativas, cobrindo mais de 20% das emissões globais, e que giraram US$ 45 bilhões em receitas no ano passado, num número que vem crescendo ano a ano, segundo dados do Banco Mundial.
Existem duas formas de precificar o carbono de forma regulada: a taxação de carbono, em que o governo especifica um preço a ser pago por tonelada de carbono emitida, e os sistemas de comércio de emissões, chamados de ‘cap and trade’ ou ‘emissions trading system’ (ETS, na sigla em inglês). Há sistemas que usam um modelo híbrido, de taxação com sistemas de comércio.
4. Sistemas de comércio de emissões
Os sistemas de comércio de emissões funcionam assim: os governos definem os setores e entidades que vão ser regulados e impõem um limite quantitativo (cap) para as emissões dessas entidades. Então, criam-se permissões de emissões compatíveis com esse limite, que são vendidas ou distribuídas gratuitamente.
O preço dessas permissões se ajusta no mercado. Vamos supor que uma empresa X tenha permissão para emitir 100 toneladas de carbono. Se ela emitir 110 toneladas, vai ter de comprar permissões para essas 10 toneladas extra de outra empresa regulada pelo sistema que emitiu menos do que poderia.
É importante entender que é um mecanismo fechado. Só compram e trocam permissões participantes regulados desse mercado. Isso explica porque os preços variam tanto entre as jurisdições. Em províncias chinesas, o preço está em cerca de US$ 3, na Califórnia, a US$ 15, e na Europa, a US$ 30.
“Posso comprar na China e vender Europa?”. Não, porque os mercados — e as permissões — têm características diferentes entre si.
(Em cada mercado, há permissões específicas para se comprar fora dos setores regulados, mas vamos chegar lá quando falarmos de offsets).
5. Os mercados regulados podem se juntar?
Em teoria, sim, mas na prática ainda acontece pouco. Aqui entra outro conceito muito importante nos mercados de carbono: o de ‘fungibilidade’. Trata-se da garantia de que os parâmetros para determinar o que é uma tonelada de carbono num determinado mercado sejam os mesmos de outro. Ou seja, os mercados têm de ter características parecidas. O mercado suíço se juntou ao europeu neste ano, após mais de uma década de negociação. O mercado de Quebec opera junto com o da Califórnia desde 2014.
6. Mercado voluntário, o irmão caçula
No mercado voluntário, as empresas compensam a emissão de CO2 basicamente por uma questão reputacional — leia-se a pressão dos consumidores e dos investidores, que cada vez mais estão cobrando uma postura ativa em relação às questões ambientais.
Com os crescentes compromissos das empresas para se tornarem carbono neutras, tem aumentado a procura por créditos no mercado voluntário. Mas ainda assim é um mercado muito menor que a somatória dos regulados: ele girou em torno de 104 milhões de toneladas no ano passado, ou US$ 320 milhões em valor de mercado, menos de 1% do que é negociado nos mercados regulados, de acordo com o Banco Mundial.
Aqui, uma empresa nos Estados Unidos pode comprar um crédito no Brasil ou em qualquer lugar do mundo. A relação é bilateral e não é sujeita a uma regulação.
7. E de onde vêm os créditos do mercado voluntário?
Os créditos do mercado voluntário podem vir de uma série de projetos que sequestraram, evitaram ou reduziram a emissão de gases de efeito-estufa. Eles vão de créditos de energia renovável a até créditos emitidos pela troca por uma fonte de energia menos poluentes na indústria, passando, é claro, pelos ativos florestais.
8. E quem garante que esses créditos realmente estão compensando as emissões?
A questão é bastante complexa e as metodologias estão em constante evolução, mas há certificadoras internacionais de carbono. A Verra é a plataforma de registro global que garante que os créditos correspondem a menos carbono na atmosfera.
Ela criou o Voluntary Carbon Standards (VCS), que é tido como referência da indústria atualmente. Há ainda o Gold Standard, considerado, como o nome diz, o padrão-ouro da indústria. Há diversas certificadoras acreditadas para aplicar as metodologias.
A maior parte dos projetos ainda é de energia renovável, mas o setor chamado de Afolu (Agricultura, Floresta e Uso da Terra), que inclui projetos de reflorestamento e conservação de florestas, é o que mais cresce, saindo de 22% em 2016 e chegando a 52% dos créditos gerados em 2019.
Os preços variam a depender do tipo de crédito no mercado voluntário, por várias razões, que passam pela quantidade de oferta e percepção de ‘integridade’ do carbono que está sendo negociado.
Os projetos florestais, por exemplo, são negociados com prêmio em relação ao mercado, em grande medida porque têm o que se chama de ‘co-benefício’, promovem a proteção da biodiversidade e atividades de desenvolvimento socioeconômico das comunidades tradicionais que deles fazem parte.
Volumes, valores e preços médios transacionados no mercado voluntário de carbono por categoria de projeto (2019)
9. Aqui entra um conceito muito importante: adicionalidade
Para emitir um crédito de carbono, um projeto tem que provar que tem um efeito ‘adicional’: ou seja, que provoca um impacto que não existiria na ausência do incentivo dado pelo crédito de carbono. É um conceito conhecido na economia como contrafactual, ou em bom português, ‘o que seria se não fosse’.
É uma discussão complexa, que gera vários debates e muita controvérsia. Mas dá pra ilustrar a ideia com um exemplo real. No começo da década, os projetos de energia renovável, como eólica e solar, só faziam sentido econômico com a receita vinda dos créditos de carbono. Não fosse essa receita, eles não sairiam do papel.
Mas, com o tempo, a tecnologia se aperfeiçoou, o mercado ganhou escala e hoje em boa parte do mundo esses projetos são mais competitivos que projetos poluentes. Resultado: hoje, é bem mais difícil que uma certificadora aceite que um projeto de energia eólica ou solar emita créditos no mercado voluntário (ainda que haja um grande estoque passado deles).
10. Offset ou compensação
Os mecanismos de compensação, ou offset, focam nos incentivos positivos à mitigação e normalmente são voluntários. Mas alguns mercados regulados também permitem compensar.
É uma forma de deixar que setores não regulados entrem no jogo, incentivando, por exemplo, atividades de reflorestamento.
Cada mercado regulado nacional ou regional define quais os offsets aceitos. A maioria permite que algo entre 10% e 20% das metas sejam cumpridos com os tais offsets. Hoje — má notícia para o Brasil — a maioria não permite offsets internacionais.
11. Neutro em carbono é diferente de ser livre de carbono
Uma empresa ou país neutro em carbono ainda emite gases de efeito estufa, mas usa projetos de compensação para chegar a zero numa conta de subtração no agregado.
O ideal de todo o sistema é se tornar livre de carbono — isto é, abandonar processos que resultem na emissão de gases de efeito-estufa. É uma tarefa hercúlea, sem dúvida, mas que explica porque os sistemas de compensação, que incluem os créditos florestais, são usados com certa moderação nos mercados regulados.
A proposta é que uma siderúrgica, por exemplo, invista cada vez mais em tecnologias limpas e não continue emitindo a torto e a direito enquanto compensa com a compra de créditos de reflorestamento.
12. Existe um mercado regulado internacional de carbono?
O artigo 6 do Acordo de Paris quer criar um mercado regulado internacional. Mas as discussões estão travadas.
A proposta desse artigo é regular as trocas internacionais — seja entre países, seja entre entes privados e públicos — como uma forma de aumentar as ambições de redução dos países. Ainda não não há um consenso internacional sobre as bases para se fazer isso.
A COP26, a ser realizada em Glasgow no fim do próximo ano, vai tentar novamente chegar a um acordo sobre isso. A depender do resultado (e de várias especificações técnicas), as negociações podem abrir um grande mercado para países com potencial de emitir créditos de carbono, caso do Brasil, que tem uma ampla reserva florestal e uma base energética limpa.
13. E onde está o Brasil?
Há anos discute-se no país uma proposta de regulação para o nosso mercado de carbono. Desde 2017, o Banco Mundial, por meio do programa Partnership for Market Readiness (PMR), patrocina um programa junto ao Ministério da Economia para se estudar a precificação de gases de efeito estufa no Brasil.
A fase de pesquisa terminou e um white paper, com as principais propostas, está previsto para sair até o fim do ano.
A equipe do PMR vem sinalizando que a inclinação é pela sugestão de um sistema de comércio de emissões para os setores de energia e indústria, que respondem por 26% das emissões, num esquema que contaria com a participação de offsets, inclusive florestais.
Mas, apesar das discussões técnicas, no fim, é tudo uma questão política. Por ora, o governo não parece estar se mexendo nessa direção e houve declarações de representantes do governo sobre a possível criação de um tributo ‘verde’ dentro da reforma tributária.
Ainda por aqui, temos também o RenovaBio, um programa de redução de emissões para o setor de combustíveis, em que as distribuidoras de combustíveis fósseis têm de comprar créditos de descarbonização (os CBIOs) de produtores de biocombustíveis.
Quanto mais eficientes são esses produtores de renováveis, mais CBIOs eles podem emitir. É um mercado pequeno e setorial e há dúvidas se poderia integrar um futuro mercado regulado. (Lembra da fungibilidade?)
14. O que o Brasil perde com o atraso nessas discussões?
O mercado de carbono é algo relativamente novo, em que as regras estão sendo definidas. Apartado do debate, o Brasil fica a reboque e se torna coadjuvante numa discussão em que deveria ter protagonismo.
Além de obviamente fomentar a economia de baixo carbono, o desenvolvimento do mercado regulado nacional daria condições para que o país se posicionasse melhor também no mercado internacional.
Seria uma espécie de ‘treinamento’, com uma série de aprendizados, que permitiriam uma melhor governança em relação ao carbono internamente no país e abririam ainda mais espaço para nossos créditos nos mercados regulados e voluntários internacionais.
Em tempo: a meta (ou NDC) do Brasil no Acordo de Paris é reduzir as emissões de gás carbônico em 37% em relação às emissões de 2005. A data limite para isso é 2025, com indicativo de reduzir em 43% as emissões até 2030.
Uma das principais contribuições para chegar nesse número viria do desmatamento ilegal zero. Basta abrir os jornais para saber o quão longe estamos deste caminho.