(Atualizada às 11h50 para incluir informações sobre o Porto do Açu)
A promessa do hidrogênio como recurso energético já entrou e saiu de moda algumas vezes, mas os astros parecem finalmente alinhados — e o Brasil tem a oportunidade de tornar-se uma potência na produção de um insumo desejado pelo mundo inteiro e essencial na luta contra a mudança climática.
O hidrogênio verde recebe esse nome porque é produzido sem a emissão de CO2, a partir da quebra da molécula da água realizada com eletricidade de fontes limpas, um recurso abundante no país.
Começam a se desenhar pelo menos três hubs para produção de hidrogênio verde no país. Esses centros orbitam em torno dos portos de Pecém, no Ceará, de Suape, em Pernambuco, e do Açu, no Rio de Janeiro, que já firmaram memorandos de entendimento com grandes grupos internacionais. O objetivo inicial é a exportação.
Em estágio mais avançado está um projeto piloto anunciado pela portuguesa EDP no porto cearense, unindo uma usina de energia solar e um eletrolisador, o equipamento que separa as moléculas de hidrogênio e oxigênio da água. O investimento é de R$ 42 milhões, e a operação deve começar no final do ano que vem.
A White Martins e a australiana Fortescue Futures, subsidiária da mineradora australiana Fortescue Metals Group, também estudam produzir H2V no Ceará. Esta última tem a ambição de ser a primeira produtora de “ferro verde” do mundo, ou seja, produzir o minério sem nenhuma emissão de CO2, e também tem planos para o Porto do Açu.
Em Pernambuco, foi anunciada uma parceria entre a Neoenergia, do grupo espanhol Iberdrola, e o governo do Estado e também um memorando de entendimentos com a francesa Qair.
Por enquanto, há mais estudos e promessas do que iniciativas reais em território brasileiro. Mas, se concretizados, os planos superariam US$ 20 bilhões em investimentos, estima Emílio Matsumara, diretor executivo do E+ Transição Energética, um centro de estudos sobre transição energética.
A movimentação é intensa porque o Brasil “tem plenas condições de assumir posição de liderança dessa nova commodity energética”, afirma um estudo recém-publicado do Grupo de Estudos do Setor Elétrico, ligado à UFRJ.
“Já vi muitos picos e vales envolvendo hidrogênio, mas agora temos um verdadeiro boom”, diz Paulo Emílio Valadão de Miranda, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e presidente da Associação Brasileira de Hidrogênio (ABH2). “O número de empresas associadas à ABH2 dobrou de junho para cá. Temos grandes projetos sendo prospectados no Brasil.”
Tempestade perfeita
A explicação é uma convergência inédita de fatores: a demanda gerada pela emergência ambiental, o amadurecimento das tecnologias produtivas, a redução dos custos e, é claro, o dinheiro para investimentos.
A produção anual de hidrogênio de baixas emissões (o que inclui, além da verde, a versão azul, feita a partir de combustíveis fósseis, mas com captura do CO2 no processo) foi de 0,36 Mt (milhão de tonelada) em 2019 e pode chegar a 7,9 Mt em 2030, de acordo com uma projeção da Agência Internacional de Energia.
Trata-se de um aumento de 20 vezes na capacidade global de produção, mas esse total ainda seria uma parte pequena do total de H2 consumido pela indústria pesada.
Setores como químico e refinarias demandam hoje cerca de 75 Mt anuais, quase tudo atendido com hidrogênio feito a partir de gás natural e carvão, com emissões que correspondem às do Reino Unido e da Indonésia somadas.
Mas a expectativa é que o hidrogênio, em especial o verde, torne-se uma commodity energética fundamental no mundo pós-combustíveis fósseis.
A Alemanha, por exemplo, anunciou investimentos públicos de US$ 10 bilhões em iniciativas relacionadas ao hidrogênio de baixas emissões até o fim desta década, dos quais uma parte será direcionada à produção em países parceiros.
As possíveis aplicações vão da indústria pesada ao transporte de cargas, duas atividades que dificilmente podem ser eletrificadas.
Na siderurgia, ele pode ser usado para substituir parte do coque queimado nos alto-fornos e já existem projetos-piloto na Europa que produzem aço de zero emissão .
“Temos usinas na Espanha e na Alemanha usando esse novo método”, diz Guilherme Correa, gerente-geral de sustentabilidade da ArcelorMittal do Brasil. “O hidrogênio verde será parte do nosso processo de descarbonização, mas a tecnologia ainda está em desenvolvimento”.
Olhando para fora
Os primeiros projetos em estudo no país estão voltados para atender o mercado externo, por duas razões principais. A primeira é a demanda: metas estritas de redução de emissões de atividades industriais impostas pelos governos.
O complexo do Pecém anunciou em abril um acordo com a White Martins para analisar a viabilidade técnica de um hub exportador.
“A ideia é comercializar a produção para a Europa, que já tem leis e protocolos mais avançados para a descarbonização”, diz Guilherme Ricci, diretor de hidrogênio e gás natural liquefeito da White Martins.
A intenção é reunir todas as etapas do processo — geração da eletricidade, eletrólise da água, armazenamento e transporte — em um polo integrado e de lá embarcá-lo diretamente em navios. No Porto do Açu, a ideia é semelhante.
“Faz sentido reunir tudo num único lugar porque o transporte responde por quase dois terços do preço final do hidrogênio”, diz Massimiliano Cervo, diretor de novos negócios da H2 Helium, uma consultoria especializada em projetos de hidrogênio fundada em abril.
Mesmo incluídos os custos de atravessar o Atlântico, o Brasil tem as condições para ser competitivo, diz Cervo. “A principal matéria-prima do hidrogênio verde é a energia renovável. O custo da eletricidade é mais baixo aqui do que em países europeus e da Oceania. A América Latina está numa posição de grande vantagem hoje.”
De acordo com estimativas da Empresa de Pesquisa Energética, um órgão do governo federal, o potencial de geração eólica do país é de mais de 1050 GW (em terra e no mar), dos quais somente 16 GW estão instalados. Em energia solar, o potencial é quase cem vezes superior à capacidade instalada.
O desafio é transformar essa energia em hidrogênio verde a um custo viável.
“O hidrogênio verde ainda custa entre US$ 5 a US$ 6 o quilo. Já o produzido a partir de combustíveis fósseis, entre US$ 2 e US$ 3”, diz Matsumura. Como referência, a energia gerada por 1 kg de hidrogênio equivale à de 3,2 kg de gasolina.
Uma parte fundamental dos planos em gestação é fechar a ponta dos compradores. “Do lado do comprador, você vai precisar de gente disposta a pagar esse prêmio inicial.”
Matsumura estima que a produção em alta escala, no Brasil e no mundo, só deva acontecer no final desta década ou no começo da próxima. “Até pouco tempo atrás se falava em 2040. Antecipamos dez anos. Mas temos de lembrar que movimentos no setor de energia são lentos.”
Até lá, ainda há a necessidade de avanços tecnológicos e ganhos de escala e o desenvolvimento do mercado consumidor.
Dos 60 bilhões de euros que a União Europeia pretende investir na economia do hidrogênio até 2030, quase metade diz respeito a sistemas de distribuição e aquecimento doméstico e industrial, transportes e veículos movidos a hidrogênio.
Um mercado interno incerto
Outra razão para o foco no mercado internacional são as incertezas em relação ao mercado interno no Brasil. A demanda potencial existe, mas ainda há zonas cinzentas em termos de regulamentação.
O governo brasileiro, por enquanto, não se comprometeu com nenhuma das cores do hidrogênio. Essa postura agnóstica, na opinião de Matsumura, faz algum sentido.
O país tem reservas abundantes de gás natural para produzir o hidrogênio azul (capturando as emissões de CO2). Além disso, o hidrogênio azul é considerado uma transição até que o H2V possa competir em termos de preço.
Por outro lado, os maiores recursos investidos mundo afora são no hidrogênio verde. Todos os grandes projetos em análise, hoje, envolvem o uso dessa tecnologia.
Por aqui, os grandes impulsionadores dessa nascente economia do hidrogênio têm sido os Estados.
O governo do Rio de Janeiro entende o Porto do Açu como principal vetor de crescimento do estado atualmente”, diz Mauro Andrade, diretor de desenvolvimento de negócios da Prumo Logística, sócia do complexo.
A área será designada uma ZPE (zona de processamento de exportação, um passo fundamental para a instalação da planta de hidrogênio. “Isso vai impulsionar a industrialização do porto, baseada em projetos de energia renovável.”
Na opinião de Matsumara, o importante agora é que o governo federal não atrapalhe. “Criar um desenho de mercado justo, que permita uma competição justa, já não é pouca coisa.”
Miranda, da UFRJ, oferece outra perspectiva. “Veja bem: exportar hidrogênio é um excelente negócio. Devemos fazer isso. Mas não podemos fazer só isso”, diz. “Não podemos nos esforçar para descarbonizar o resto do mundo e não nos descarbonizarmos.”
Ele opina que têm de ser criadas as condições regulatórias que permitam também o desenvolvimento de tecnologia nacional. O risco, diz Miranda, é repetirmos a exportação de minério de ferro e a importação de aços especiais.
Ele aponta o desenvolvimento do setor do etanol como exemplo. “O primeiro motor a álcool foi desenvolvido no Brasil na década de 1920.” Esse mesmo pioneirismo, diz, pode sustentar uma onda de inovação brasileira relacionada ao hidrogênio.
Pesquisadores da UFRJ já demonstraram três versões do H2+2, um protótipo de ônibus movido a hidrogênio que foi utilizado na Olimpíada do Rio, em 2016. Nos Jogos de Tóquio, realizados em julho, mais de 500 ônibus movidos a hidrogênio transportaram os atletas.
O país também tem startups focadas no desenvolvimento de células de combustível, sistemas de tração e produção de hidrogênio a partir de biomassa.
“Nos últimos 20 anos, o Brasil fez investimentos não-desprezíveis em ciência e tecnologia nessa área. Temos vantagens importantes em relação a outros países da América Latina”, diz Miranda.