Manual do net zero: 5 passos para avaliar se as metas climáticas vão além do marketing

Elencamos as boas práticas para avaliar se as promessas das empresas contribuem de fato para a contenção do aquecimento global

Manual do net zero: 5 passos para avaliar se as metas climáticas vão além do marketing
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Seguindo um movimento que já vinha ganhando força lá fora, cada vez mais empresas brasileiras prometem se tornar ‘carbono-neutras’ até 2050 — ou até bem antes disso. Ifood, JBS e Minerva são as últimas a figurar na lista, que já inclui pesos-pesados como Vale e Braskem.

Estabelecer uma ambição para daqui a várias décadas pode ser fácil, senão até confortável, para executivos que colhem os louros das manchetes positivas, mas não estarão na cadeira para serem cobrados quando o prazo expirar. 

Mas sair apenas do marketing para um plano de ação capaz de contribuir efetivamente para a contenção do aquecimento global (e para tornar o negócio mais resiliente a ele) é uma história completamente diferente. 

Parte do problema é que, na prática, cada empresa define o net zero em termos bem diferentes e até os conceitos são meio embaralhados, o que abre muito espaço para greenwashing. 

O Science Based Targets Initiative (SBTi), um grupo de trabalho de várias organizações sem fins lucrativos que busca alinhar os compromissos corporativos com a ciência do clima, está trabalhando num padrão para avaliação de compromissos de net zero, o que deve ajudar a botar ordem na bagunça. 

Mas, mesmo com definições pendentes, é possível separar o joio do trigo? Há uma série de boas práticas que consumidores e investidores podem buscar ao avaliar os compromissos de net zero corporativos para avaliar se eles realmente vão além da cortina de fumaça. 

Elencamos as principais:

Reduzir emissões é mais importante que compensar 

A estratégia da empresa se baseia principalmente na compensação das emissões com créditos de carbono? Sinal amarelo. Os chamados offsets são importantes e bem-vindos, mas como estratégia complementar e de transição.

O importante é ter um plano de ação para reduzir as emissões da própria empresa e da sua cadeia de valor (falaremos disso mais adiante). Em outras palavras: no net zero, o ‘zero’ é mais importante que o ‘net’. 

Está na definição de net-zero do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) da ONU: a neutralidade é atingida “ao se reduzir as emissões o mais próximo do zero em um determinado período e compensar quaisquer emissões remanescentes com projetos que removam emissões da atmosfera”. 

A neutralidade, portanto, não pode ser um passe-livre para que a companhia continue o ‘business as usual’. 

“A compensação pode ser uma boa prática, para incentivar o mercado, mas a pergunta é: além disso, o que você está fazendo?”, diz Lauro Marins, chefe de consultoria ESG e mudança climática da Resultante e ex-head do Carbon Disclosure Project (CDP) no Brasil.

As compensações devem ser destinadas a emissões residuais, aquelas que são muito difíceis de abater, porque não há tecnologia disponível para tal ou porque o preço da tecnologia ainda é extremamente impeditivo. 

“Não é só uma conta de soma zero. É mais uma conta de transformação de modelo de negócios”, diz Felipe Nestrovsky, head de ESG para empresas não-financeiras da Sitawi. 

Além de as compensações não poderem ser uma muleta que impede a transição para processos de baixo carbono, há também outras questões conceituais. Há preocupações quanto à qualidade dos créditos de carbono e o quanto eles efetivamente contribuem para remover CO2 da atmosfera. E mais que isso: se todo mundo decidir plantar árvores ou comprar offsets, simplesmente não vai ter terra ou projetos geradores de crédito suficientes no mundo. 

Ter metas intermediárias…

Metas de 20 ou 30 anos soam inevitavelmente vagas e para tangibilizá-las é necessário mostrar o caminho a ser percorrido para chegar lá. 

Aqui, vale lembrar o que ampara os compromissos de neutralidade. Pelo Acordo de Paris, as nações se comprometeram a limitar o aumento da temperatura a bem menos” que 2ºC — e idealmente a 1,5ºC — para evitar os efeitos mais catastróficos do aquecimento global. Para isso, é necessário que o mundo atinja a neutralidade de carbono até 2050. 

O que muita gente esquece é que, antes disso, precisamos cortar as emissões pela metade até 2030. E estamos longe: o último relatório da ONU afirma que cortamos as emissões apenas em 0,5% entre 2010 e 2030. 

De acordo com um relatório do NewClimate Institute, em outubro, apenas 8% de 1565 companhias em todo mundo com objetivos net zero tinham metas intermediárias robustas.

Além disso, é preciso ser transparente ao detalhar os compromissos e fazer reportes, de preferência anuais, sobre o progresso em relação às metas. 

“Aqui, além de ser claro, é importante ser honesto e falar sobre as limitações e os desafios. Tem desafios nessa jornada de descarbonização que são complexos e a companhia perde mais em tentar disfarçá-los do que dizendo como efetivamente está lidando com eles”, aponta Nestrovsky.

… e alinhadas à ciência

Submeter o compromisso climático e as metas de redução ao SBTi é apontado como uma boa prática por todos os especialistas. 

“É um selo de qualidade para os consumidores, os investidores e para a própria empresa”, diz Carla Leal, diretora da WayCarbon.

A SBTi avalia o quanto um compromisso está alinhado à ciência do clima, ou seja, o quanto ele efetivamente contribui para mitigar o aquecimento global em linha com o que prega o Acordo de Paris. 

Na prática, o que mais interessa para o SBTi não é a neutralidade climática em 2050, mas como a companhia está caminhando para chegar lá. 

“Tem todo um caminho a percorrer antes de ser net zero em 2050. E a primeira coisa é ter uma meta baseada em ciência. Depois que você tem uma meta aprovada, ela é monitorada a cada cinco anos e vai se apertando para garantir a ambição”, aponta Marins, da Resultante. 

Aqui, um disclaimer importante sobre como funcionam as coisas no SBTi. As empresas enviam uma carta à iniciativa com o seu plano ou a intenção de apresentá-lo em breve e há um prazo de dois anos para que as metas apresentadas sejam validadas. 

De acordo com as informações disponíveis no site, no Brasil, são 19 empresas comprometidas com a SBTi: Ambev, Klabin, Baluarte Cultura, Banco do Brasil, EDP – Energias do Brasil, MRV, Sabará Participações, Marfrig, Gol, Unidas, Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), AES Brasil, Movida, Mattos Filho, Vale, Lojas Renner, Grupo Malwee e Natura &Co. 

Dessas, apenas três já tiveram suas metas aprovadas: Energias do Brasil, Sabará e Baluarte Cultura. 

A meta deve englobar a cadeia de valor (os escopos 1, 2 e 3)

Outra falha comum dos compromissos climáticos é escolher os tipos de emissões que mais convêm para a neutralização. 

Com frequência, as companhias incluem apenas as emissões de escopo 1, emitidas nas suas operações diretas, e de escopo 2, que dizem respeito à energia utilizada nos processos. E costuma ficar de fora o chamado ‘escopo 3’, que diz respeito à cadeia de suprimento e ao uso dos produtos pelos clientes e onde está concentrada a maior parte da pegada de carbono. 

De acordo com o Fórum Econômico Mundial, 85% das emissões de gases de efeito-estufa do setor de moda vem da cadeia de suprimentos. O mesmo vale para o setor de bens de consumo de giro rápido (aqueles que você compra no supermercado ou na farmácia), onde o percentual chega a 90%. 

O mesmo vale para os bancos: pouco adianta compensar as emissões de prédios e data centers e deixar de lado o impacto do financiamento a projetos intensivos em carbono. 

Nesse sentido, o SBTi tem uma regra de ouro: as empresas precisam considerar o escopo 3 nas suas metas de redução quando elas representam mais de 40% das emissões. 

É um bom parâmetro, diz Nestrovsky, da Sitawi. Com um ponto de atenção importante: com frequência, as empresas nem sequer medem efetivamente as emissões de escopo 3. 

“Só o fato de uma companhia não ter medido alguns tipos de emissões — e em alguns casos tem algumas dificuldades técnicas mesmo —, não significa que deve se eximir do escopo 3 porque ele ainda não consta no inventário”, aponta.

Um bom exemplo são os frigoríficos. Boa parte das emissões associadas a sua atividade vem do desmatamento associado à criação dos bois que depois serão abatidos. O fato de ainda não terem monitorado toda sua cadeia não pode eximir as empresas do setor de se responsabilizarem pela neutralização dessas emissões. 

O discurso vai além da área de sustentabilidade

A empresa tem uma meta de net zero ou de redução agressiva de emissões e o CEO ou o CFO não falam — ou nem sabem responder perguntas — sobre o assunto? Sinal de alerta novamente. 

Não importa a empresa e não importa o setor. Mudar os processos envolve pensamento holístico e de longo prazo, e não só a área de sustentabilidade. 

“A empresa tem que parar de pensar no trimestre ou semestre ou no ano e isso é uma característica do mercado brasileiro. É preciso mudar o chip para pensar onde a empresa vai estar em 20 anos”, diz Marins, da Resultante. “O CFO tem que entender como esse negócio de neutralizar emissões vai impactar o Ebitda no ano e no longo prazo.”

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