(* Atualizado às 12h28, para precisar que as incertezas em relação ao artigo 6.2 envolvem os mecanismos de contabilidade dos ajustes correspondentes, não o cumprimento das NDCs)
A essa altura você já leu ou ouviu falar que um dos principais resultados concretos da COP26, que terminou no sábado passado, foi a regulamentação do Artigo 6 do Acordo de Paris.
Mas quase uma semana depois de encerrada a cúpula do clima, ainda há muita confusão e dúvidas sobre o que isso significa de verdade.
O objetivo principal do Artigo 6 é incentivar a colaboração internacional para reduzir as emissões globais de gases do efeito estufa dos países, via mecanismos que permitam trocar créditos de carbono.
Uma tonelada de CO2 emitida com a derrubada de árvores na Amazônia e nas siderúrgicas da Alemanha têm o mesmo impacto no aquecimento global – mas os custos de evitá-las são muito diferentes.
Na prática, isso significa que faz mais sentido econômico investir um dólar aqui no Brasil do que para fazer aço verde nas usinas alemãs (embora isso não isente as empresas e países de descarbonizar suas próprias atividades).
A lógica econômica de buscar o melhor retorno ambiental onde quer que ele esteja já existia. Faltava definir alguns princípios básicos de transparência, qualidade e contabilidade.
Esse foi o consenso atingido pelos quase 200 países representados em Glasgow no último sábado. Ainda vão se discutir as minúcias da implementação, mas as definições gerais finalmente foram acordadas.
Para explicar as principais regras aprovadas e o que elas significam na prática, preparamos um breve guia livre de jargões e termos técnicos da linguagem diplomática.
O assunto pode parecer um pouco etéreo – e é mesmo, pelo menos por enquanto. As negociações dos créditos regulamentados pelo Acordo de Paris não vão começar no mês que vem, nem no ano que vem.
Mas a oportunidade é muito grande, especialmente para o Brasil, e cada vez mais fará parte da agenda das empresas, dos investidores e do governo.
O que foi decidido na prática?
Temos de começar explicando o que não foi decidido. Diferentemente do que muita gente pensa, o Artigo 6 não cria um mercado de carbono mundial centralizado, uma grande bolsa que concentra todas as transações de créditos negociados entre países e empresas — e nem era essa a intenção.
O consenso que saiu de Glasgow cria as diretrizes básicas para possam acontecer trocas de reduções de emissão de CO2 entre países e também entre países e entes privados, tendo como princípio básico a colaboração internacional para cumprir as metas nacionais de descarbonização das economias propostas dentro do Acordo de Paris para frear o aquecimento global.
Uma observação importante sobre essas regras gerais (que vamos explicar mais adiante) é que elas não serão aplicadas aos mercados voluntários de carbono.
Ou seja, nada muda para as empresas que compram créditos de CO2 para alcançar seus compromissos auto impostos de descarbonização. Essa era uma dúvida a resolver.
Essencialmente, essas transações acontecerão “à margem” da contabilidade das metas nacionais do Acordo de Paris.
Isso não quer dizer que as reduções espontâneas de emissão sejam inócuas, é claro.
O resultado da COP26 simplesmente significa que esses créditos de carbono não terão de entrar nas NDCs, como são chamadas as metas nacionais de cada país.
Isso isenta essas transações da etapa potencialmente burocrática e complexa de avalizá-las e contabilizá-las nas respectivas NDCs (sem contar que todo o sistema para fazer essa conciliação ainda tem de ser criado).
Com esse esclarecimento, a expectativa é que o mercado voluntário de créditos de carbono – que já existe hoje – cresça de forma significativa.
“Finalmente houve um acordo sobre essa questão”, diz Paula VanLananingham, chefe da área de carbono da S&P Global Platts. “Essa era uma das grandes perguntas no ar.”
Mas, então, que tipo de transações estão contempladas pelo Artigo 6?
As trocas bilaterais entre países (parágrafo 6.2) e as trocas que envolvem entes privados para cumprimento das metas nacionais de redução de emissões (parágrafo 6.4).
O que ficou acertado sobre ambos ainda terá de ser detalhado em minúcias nos próximos meses (ou anos), mas os principais entraves foram superados.
Vamos tratar deles nos itens seguintes.
A dupla contagem
O principal obstáculo superado foi o da contabilidade. Lembre-se de que estamos falando agora do balanço nacional de carbono de cada país, expresso em sua NDC.
Considere o exemplo de um projeto para substituir uma usina termelétrica a carvão na África do Sul financiada por investidores da Suíça que, em troca, ficam com os créditos de carbono gerados.
Para este exemplo, estamos considerando que reduzir esse tipo de emissão faz parte da meta dos sul-africanos e que os suíços pretendam usar esses créditos para cumprir a NDC do país. Essa transação se encaixa dentro do artigo 6.4.
A lógica diz que os créditos de CO2 vendidos para os suíços não deveriam ser usados também no cumprimento da meta da África do Sul.
Mas, acredite, foi só em Glasgow que isso foi colocado no papel. Ficou definido que, se o país comprador usar os créditos para abater de sua meta, esses créditos têm que ser descontados da meta do país hospedeiro do projeto que gerou os créditos, para evitar uma dupla contagem.
O nome desse desconto é “ajuste correspondente”. Essa definição tem impactos potenciais importantes.
A primeira diz respeito a mercados regulados de carbono. Alguns países e regiões já impõem limites de emissões a alguns setores da economia particularmente poluentes.
Abre-se o caminho para que esses mercados (parte de um sistema chamado ‘cap and trade’) possam se interconectar, já que ficou claro que os resultados de mitigação não serão contados em duas NDCs diferentes.
(O projeto de lei que trata da criação de mercados regulados no Brasil está parado na Câmara dos Deputados e é uma demanda antiga do setor empresarial.)
Créditos usados para “outros propósitos internacionais de mitigação”, como o mecanismo CORSIA, do setor aéreo, também estarão sujeitos a esses ajustes correspondentes.
Os detalhes
Ainda faltam os detalhes práticos e a resolução de algumas “ambiguidades construtivas”, como diz a advogada Caroline Dihl Prolo, do escritório Stocche Forbes. Prolo esteve em Glasgow participando das negociações do Artigo 6.
A parte operacional será estabelecida por um comitê de 12 países que vai operar dentro do âmbito da ONU. É esse organismo que vai determinar as metodologias aceitas nas transações que se encaixam no artigo 6.4.
Isso deve demorar algum tempo. O chamado Mecanismo do Desenvolvimento Limpo, uma espécie de precursor do Artigo 6.4, foi estabelecido pelo Protocolo de Kyoto em 1997, mas as primeiras negociações de créditos de carbono só aconteceram mais de cinco anos depois.
Os créditos descontáveis nas NDCs terão de ser aprovados pelo país onde forem originados, ou seja, cada país terá de criar uma estrutura própria para isso.
“O Brasil tinha uma comissão para analisar os créditos de Kyoto, mas essa estrutura foi desmontada”, diz Natalie Unterstell, fundadora do Instituto Talanoa e especialista em negociações do clima.
Esse organismo funcionava mal, diz Plinio Ribeiro, CEO da Biofilica Ambipar. “Quando a gente comparava a velocidade de andamento dos projetos no Brasil com China e Índia, eles eram muito mais eficazes. Espero que a dinâmica seja acelerada, ou não vamos realizar todo nosso potencial”, afirma Ribeiro.
Já Natália Renteria, gerente técnica do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável, é mais otimista. Ela afirma que a experiência passada pode ser uma vantagem. “Além disso, as regras serão novas para todo mundo.”
Burocracias à parte, a expectativa é que o rigor técnico e metodológico aplicado a esses créditos – que pode se tornar o “padrão ouro”, nas palavras de Prolo – se traduzam em valor maior.
Essa diferença em relação aos mercados voluntários também tem outra dimensão: haverá pressão para que as empresas deem preferência a esses créditos que entram na conta da ONU.
“Para garantir credibilidade, as empresas com certeza não deveriam aceitar reduções sem autorização [sem desconto em NDCs]”, diz ao Reset Sam van den plas, diretor de políticas do centro de estudos Carbon Market Watch.
De qualquer modo, alguns analistas esperam que haja uma convergência natural desses negócios fechados no âmbito da ONU e nos mercados voluntários – tanto em termos de exigência como de preço.
“No fim das contas, a decisão [sobre encaixar ou não no Artigo 6.4] será dos desenvolvedores dos projetos e dos compradores”, diz Felipe Bittencourt, fundador e CEO da Way Carbon.
Ou não. Pelo menos é o que pensa Lambert Schneider, coordenador de pesquisas do think tank alemão Öko-Institut e parte do time da UE que negociou o Acordo de Paris.
“Governos ou a Justiça podem começar a regular que tipo de afirmações [de neutralidade de carbono] as empresas podem fazer se usam créditos que não são sustentados por ajustes correspondentes”, escreveu ele num artigo sobre os resultados de Glasgow.
De qualquer maneira, tudo isso só será uma consideração prática quando as regras forem detalhadas e as autoridades nacionais, criadas.
O imposto obrigatório
Outra decisão tomada em relação às transações que se encaixam no artigo 6.4 é a incidência de um imposto de 5% sobre as transações.
Essa foi uma demanda dos países mais pobres, que precisam de ajuda para se adaptar às mudanças climáticas. Para as transações bilaterais entre países, não haverá essa exigência – por imposição dos países desenvolvidos.
Outros 2% dos créditos transacionados serão cancelados automaticamente. O objetivo dessa medida é garantir a redução efetiva das emissões, ainda que pequena.
Já as trocas entre países estão isentas também desse cancelamento obrigatório. O texto apenas incentiva algum tipo de cancelamento, levando em consideração o disposto no artigo 6.4.
As trocas entre países
As trocas de créditos de emissões entre países receberam o nome de ITMOs, sigla em inglês para resultados de mitigação comercializados internacionalmente.
Ainda há questões em relação à aplicação prática da ideia.
Em primeiro lugar, elas só fazem sentido se o país vendedor já tiver atingido as metas que estabeleceu para si mesmo na NDC. Do contrário, ele estaria recuando, não avançando, em suas promessas climáticas.
Mas ainda existem dúvidas sobre a maneira de avaliar o cumprimento das NDCs para que seja feita a posterior conciliação nos respectivos saldos de carbono. Parte da dificuldade tem relação com os diferentes prazos estabelecidos pelos países em suas metas (alguns falam em cinco anos, outros em dez).
O texto de Glasgow afirma que um país participante dessas transações deve ter “preparado, comunicado e estar mantendo uma NDC” e sugere algumas possíveis soluções. A operacionalização será feita em discussões técnicas, que acontecem a partir do ano que vem.
Cada país define sua própria NDC e não existem penalidades em caso de descumprimento. O prejuízo é somente para a imagem do país perante a comunidade internacional — e para o clima, obviamente.
Mesmo sem o detalhamento completo, o fato é que um país que queira utilizar esse mecanismo de cooperação terá de demonstrar que está se esforçando para cumprir o prometido.
“O Brasil tem uma excelente oportunidade. Mas para isso temos de realizar a NDC, o que significa acabar com o desmatamento”, afirma Bittencourt, da Way Carbon.
“Se estivermos mal, longe de cumprir a NDC, vai ficar feio vender créditos e fazer ajustes correspondentes.”
A herança de Kyoto
Por fim, foi determinado o prazo de validade dos créditos gerados no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, instrumento criado no Protocolo de Kyoto que estabeleceu um primeiro mercado global de créditos de carbono e que foi suplantado pelo Acordo de Paris.
Como eles são muitos – algumas estimativas falavam em até 4 bilhões de unidades –, havia o temor de que esses créditos, considerados de menor qualidade, pudessem inundar o mercado.
Ficou decidido que somente serão válidos os créditos apurados entre 2013 e 2020. Calcula-se que o total transportado para o novo mecanismo seja de cerca 300 milhões de créditos. Eles poderão ser utilizados para o abatimento de NDCs somente até 2030.