Filantropia e mercado financeiro ocuparam territórios distantes por anos a fio. Mas, com a lei dos fundos patrimoniais aprovada no Brasil em 2019 e o avanço das doações durante a pandemia, os dois mundos podem começar a se encontrar mais vezes.
PUC-RIO, Unesp, Unicamp e Museu de Arte do Rio são algumas das instituições que já deslancharam o processo para criar seus fundos patrimoniais nos últimos meses.
Os fundos patrimoniais – ou fundos de endowment – reúnem doações direcionadas a causas como saúde, pesquisa, segurança pública ou educação. Por definição, nestes fundos, o capital filantrópico propriamente não é repassado à causa. Ele é alocado em produtos financeiros e apenas o retorno sobre o investimento é direcionado a projetos alinhados ao propósito do fundo.
Assim, o principal continua investido para gerar novos retornos e entregar independência financeira à causa apoiada.
Nos Estados Unidos, é comum que universidades de ponta tenham endowments para lá de generosos formados por doações de ex-alunos e que ajudam a pagar as contas. Harvard e Yale, por exemplo, têm fundos com mais de US$ 30 bilhões – o de Yale foi constituído em 1718 — que cobrem cerca de 30% de seus orçamentos.
A proposta é que, com os endowments, as instituições fomentem pesquisas, laboratórios e inovações, ficando mais independentes das receitas ordinárias.
É esse o propósito da lei 13.800, que autorizou as instituições públicas brasileiras a criarem seus fundos patrimoniais. O objetivo é possibilitar que tenham um bolso próprio para bancar pesquisas e melhorias, enquanto o Estado se responsabiliza pelas despesas correntes, como folha de pagamento.
“A maioria das fundações de apoio das universidades deve criar seus endowments. Não tenho dúvida disso”, diz Paula Fabiani diretora-presidente do Instituto para Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS).
Ela também vê espaço para que instituições culturais também criem seus fundos porque os doadores poderão fazer dedução de impostos via Lei Rouanet. “É um mecanismo de captação eficiente.”
Instituições e fundações do setor privado também devem se valer da nova lei para constituir endowments.
“A covid mexeu com as pessoas e mais famílias têm nos procurado para entender como doar dinheiro para pesquisas e hospitais. Essa é a ‘picadinha’ para a filantropia”, avalia Renata Biselli, head de soluções sustentáveis e filantropia no private banking do Santander e destacada para cuidar da estruturação de endowments no banco.
O texto define a estrutura jurídica e de governança dos fundos patrimoniais, clareando o processo de constituição e dando mais segurança para os doadores. O capital do endowment não pode ser usado para custear, por exemplo, eventuais processos trabalhistas ou prejuízos de uma má gestão institucional.
A lei começou a ser discutida em 2012 e atende uma demanda principalmente das universidades públicas e instituições culturais. O fator determinante para sua aprovação foi o incêndio no Museu de História Nacional do Rio de Janeiro, em 2018.
“Ali ficou claro que um fundo patrimonial devidamente gerido e alinhado à causa do museu ajudaria nas verbas de manutenção e obras emergências de recuperação do prédio, que deixaria de ser mais uma das obrigações da UFRJ”, diz a advogada Priscila Pasqualin, do PLKC Advogados, uma especialista no tema.
Abrindo caminho
Paula Fabiani estima que existam hoje no país cerca de 25 fundos patrimoniais com R$ 75 bilhões em ativos. São estruturas criadas ainda antes de existir uma legislação específica.
O número que chega a impressionar é inflado por uma única instituição, a Fundação Bradesco, que tem patrimônio de R$ 61 bilhões e foi criada por Amador Aguiar para perpetuar a estrutura do banco que fundou. Ele doou a maior parte de suas ações à fundação, que se dedica a projetos na área de educação.
Outros endowments criados antes da lei de 2019 são o da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, voltada à causa da primeira infância, com R$ 605 milhões de patrimônio, e o do Instituto Serrapilheira, fundado por João Moreira Salles em 2016 e dedicado à ciência, que acumula R$ 683 milhões.
A gestão patrimonial
Se de um lado os endowments podem suprir a demanda das instituições, de outro representam um desafio para gestoras de recursos do país.
A lógica de investimento é diferente da dos fundos convencionais ou de previdência, que prevêem o resgate do principal em algum momento.
“Entre as assets, ainda não há uma compreensão clara da finalidade desse tipo de fundo”, diz Fabiani. “A alocação deve ser alinhada à causa e o diálogo não é o de maximização de lucro. Um investimento de endowment olha o prazo de 100 anos, enquanto na pessoa física, o longo prazo é 20 anos.”
Pela lei, a escolha das casas que aplicarão os recursos têm que ser feita pela organização gestora do fundo patrimonial, a figura jurídica responsável pela captação e gestão do patrimônio.
Para cada fundo há uma política de investimento que define, por exemplo, o percentual limite de alocação em cada classe de ativo. E que setores se alinham à causa apoiada.
O mercado
Um dos bancos que se movimentou após a aprovação da lei foi o Santander.
O banco reuniu as áreas de assessoria jurídica, sustentabilidade e private bank para atuar no processo de constituição dos endowments. O plano é auxiliar na estruturação e gestão, via asset, que segue uma arquitetura aberta, aplicando também em produtos de outras casas.
“Como o tema é muito novo, queremos ajudar as famílias [do private] a entender o diferencial e como formar seus fundos patrimoniais”, diz Vitor Ohtsuki, diretor do private banking do Santander. Mesmo tendo dado preferência a atuar em todo o processo, o banco não descarta entrar apenas como gestor de recursos.
Atualmente já trabalha para alguns clientes, como a Univale e a Associação Educação sem Fronteiras. A expectativa no banco é ter mais entrada junto a universidades, em que já tem uma atuação.
Ohtsuki explica que, por enquanto, a alocação dos ativos tem obedecido a uma estratégia mais tradicional de diversificação, que contempla produtos offshore, renda fixa, renda variável e câmbio.
“Para entrar em produtos mais sofisticados, de menor liquidez e maior risco, precisamos fazer um processo de aculturamento das famílias, que ainda enxergam o investimento dos fundos patrimoniais com a mesma lente que olham seus próprios investimentos.”
A gestora de fortunas Pragma trabalha na constituição de endowments para seus clientes desde 2008. “Foi um processo natural. Fazíamos a gestão patrimonial de longo prazo e geração de renda para nossos clientes que, em geral, já têm uma causa”, diz o sócio Diego Martins.
Como se trata de longo prazo, um investimento comum da casa é em florestas, que têm ciclos de mais de 10 anos. O capital costuma ser reinvestido ao final do ciclo.
“No endowment você pode ter paciência”, diz Martins. “E o capital de longo prazo deve remunerar melhor porque nem todo mundo pode investir por tanto tempo.”
Ele comenta que, nos Estados Unidos, fundos de primeira linha chegam a ter entre 40% e 50% do patrimônio em ativos ilíquidos como private equity, venture capital, imóveis e recursos naturais.
Os Amigos da Poli
No fundo patrimonial Amigos da Poli os investimentos são calibrados para entregar inflação mais 5% ao ano, padrão usado em outros endowments mundo afora. “A inflação mantém o poder de compra do patrimônio, e os 5% a gente direciona para projetos da Poli”, afirma Diego Martins, que também é um dos fundadores do Amigos da Poli.
Claro que os produtos usados nessa calibragem mudam de acordo com o cenário do mercado. Nos primeiros anos do fundo, todo o capital era aplicado em NTN-B, mas em 2018 o jogo dos juros virou e o comitê de investimento, que tem Luis Stuhlberger, da Verde Asset, Guilherme Affonso Ferreira, da Teorema, e Luis Soares, da Núcleo, viu uma oportunidade de aumentar a alocação em ações.
O Amigos da Poli é formado por ex-alunos que decidiram criar uma estrutura para alinhar a faculdade de engenharia da Universidade de São Paulo com os pares internacionais.
Lá atrás, em 2009, a meta era captar R$ 5 milhões em doações junto a outros ex-alunos. Hoje o Amigos da Poli tem R$ 32 milhões e já recebeu doações de mais de 4 mil pessoas. O capital está alocado em um fundo exclusivo sob gestão do Credit Suisse Hedging-Griffo.
Na visão de Martins, além da nova lei, o cenário dos juros baixos também vai fomentar a indústria do endowment no Brasil.
Ele lembra que muitas organizações ligadas a causas e que sejam custeadas por famílias ou cuja atividade gera caixa, têm reservas aplicadas em CDI, que hoje perde para a inflação.
Mas os fundos patrimoniais não são uma solução para todos os casos. Tendem a valer para causas mais duradouras e que abrem mão de um grande impacto imediato.
No Insper, que precisa custear R$ 13 milhões em bolsas de estudo anualmente, a constituição de um endowment ainda está sendo estudada.
“Para chegar a esse valor todo ano precisaríamos de um fundo com cerca de R$ 300 milhões”, diz Ana Carolina Velasco, gerente de relacionamento institucional do Insper.
Conseguir esse capital é um desafio e tanto porque, segundo Velasco, as pessoas ainda preferem doar aos poucos e muitos ficam mais confortáveis gerenciando o próprio dinheiro. Além disso, a cultura de doação ainda não está estabelecida no Brasil.
Incentivo fiscal
Para quem acompanha o assunto de perto, a lei pecou ao não conferir incentivo fiscal para todos as doações e atividades relacionadas a fundos de endowment. E isso atrasa o avanço da indústria.
De forma geral, pela lei, o doador não tem o direito de deduzir do seu imposto de renda o valor transferido ao fundo. A instituição, dona do capital investido, tampouco fica isenta da tributação sobre os rendimentos.
Hoje as instituições recorrem a outras leis, que não a dos fundos patrimoniais, para conseguirem isenção fiscal – estão isentas as causas de educação, assistência social, saúde, cultura e esporte.
Fabiani, do IDIS, e Pasqualin, do PLKC Advogados, junto à Coalizão pelos Fundos Patrimoniais Filantrópicos, estão articulando uma mudança nesse aspecto da lei.
A proposta é que as todas doações e os investimentos realizados debaixo do guarda-chuva do endowment tenham imunidade tributária imediata.