
O feriado prolongado foi agitado no mundo de investimentos de impacto. A Spectra Investments, focada em ativos alternativos, publicou uma carta a seus clientes com críticas à definição e à implementação de investimentos de impacto. O documento gerou uma reação em massa dos gestores desse tipo de fundo. Vox Capital, Rise Ventures, Fama Re.capital e Positive Ventures, referências no setor, rebateram os argumentos apresentados.
Ao longo de oito páginas, a Spectra discorre sobre sua visão do conceito de investimentos de impacto e os desafios relacionados à sua mensuração, padronização, implementação e escalabilidade. Segundo a gestora, é “romântica” a visão de que seria possível alcançar o melhor dos dois mundos: maximizar, ao mesmo tempo, o retorno financeiro e impactos positivos socioambientais.
Os gestores de impacto apontaram que faltou conhecimento sobre o tema e sobrou simplificações e esvaziamento de conceitos. Em suas respostas, concentraram esforços em explicar o que é e como funciona um investimento de impacto. Em linhas gerais, aquele que se baseia em dois parâmetros básicos: performance financeira e impacto social e ambiental – e não mais apenas o retorno financeiro, como as aplicações tradicionais.
O conceito-chave do segmento é o da intencionalidade: ou seja, o negócio ou investimento tem como objetivo encontrar solução para algum problema social ou ambiental.
“A diferença entre investidores de impacto e os que são tidos como ‘tradicionais’, é que os de impacto se importam com as consequências de suas alocações (declaram a intenção, medem, gerenciam e perseguem)”, escreveram Daniel Izzo e Gilberto Ribeiro, sócios da Vox, pioneira do setor no Brasil.
Eles lamentaram que a Spectra “escreva para seus clientes em defesa da manutenção do status quo e contra as inovações que o mercado, do qual fazem parte, está criando para buscar remédio para os problemas do nosso tempo, privando-os de fazer escolhas conscientes de que tipo de mundo querem construir com seu dinheiro”.
Por se tratar de um mercado e debate relativamente novos, diversos conceitos fundamentais do investimento de impacto ainda carecem de pacificação e compreensão aprofundada, aponta Fabio Alperowitch, fundador da Fama Re.Capital.
“Dentro do setor, há atores com visões diferentes sobre o que é ou não investimento de impacto. Mas o que a Spectra traz na carta é objetivamente errado”, disse ao Reset. Ele foi o primeiro a se posicionar sobre a carta da Spectra e defendeu que o investimento de impacto é uma abordagem estratégica sofisticada, “e não uma mera resposta filantrópica ou social”.
‘Do no evil’
Com R$ 7 bilhões sob gestão, a Spectra tem uma posição consolidada no mercado de ativos alternativos. A gestora foi fundada em 2012 e a maior parte dos recursos vem de family offices, fundos de pensão e fundos patrimoniais (endowments) de universidades.
“Não ficou clara nossa intenção com a carta. Não era falar mal de impacto, mas abrir o debate sobre como melhorar esse mundo”, disse Ricardo Kanitz, sócio-fundador da Spectra, ao Reset. “Investimento de impacto é importante, é o futuro. Faz bem para a sociedade. Só que eles ainda não estão perfeitos e não chegaram à fórmula final ou ideal de como maximizar o valor do impacto.”
O executivo se disse surpreso com as reações. Segundo ele, o objetivo era tratar de práticas prejudiciais ao mercado financeiro – tema abordado no fim do documento, a partir da página 6.
A proposta da Spectra apresentada na carta é de que seria mais eficiente focar na eliminação das externalidades negativas dos investimentos antes de priorizar a maximização das positivas. “‘Do no evil’ antes de nos preocuparmos em definir qual valor moral deveria ser prioridade na geração de benefícios sociais”, diz a gestora no documento.
Filtros de ‘do no harm/evil’ e práticas ESG são “higiene mínima básica” de qualquer gestor que quer continuar captando nas próximas décadas, escreveu Pedro Vilela, sócio da Rise Ventures. Segundo ele, negócios de qualquer natureza que não fizerem sua lição de casa nas práticas ESG vão perder valor ao longo do tempo, pois terão custos de capitais aumentados, dificuldade de atração de investidores, diminuição de suas bases de consumidores e dificuldade em atração e retenção de talentos.
O gestor afirmou que investimentos de impacto podem ser tão atrativos financeiramente quanto outros investimentos alternativos comparáveis, e que todas as classes de ativos lidam com filtros que impõem um teto de retornos. “Aqui, cabe fazer uma escolha adequada de gestor, e não estereotipar a classe”, escreveu Vilela.
Kanitz discorda. “Seria muito mais sincero se o pessoal [do impacto] falasse: investe comigo, porque ainda que meu retorno seja um pouco pior, você vai ajudar a sociedade. Essa é uma venda mais verdadeira do que dizer que vão dar um retorno tão bom quanto e ainda assim salvar o mundo.”
Mineração de impacto?
Na carta, a Spectra traz um exemplo polêmico para defender sua visão de que qualquer investimento poderia ser considerado de impacto: o de uma mina de cobre – ativo que integra seu portfólio.
O raciocínio foi o seguinte: o aporte tende a levar à maior produção de cobre, com consequente crescimento da oferta e queda do preço. Sendo o metal um componente importante na fabricação de smartphones, esses sofreriam redução no preço e poderiam ser popularizados. “Portanto, ao investir em uma mina de cobre, contribui-se indiretamente para a inclusão digital de um número maior de pessoas”, conclui a carta.
O exemplo é usado há anos pela Spectra e criticado pelo mercado de impacto.
Murilo Menezes, sócio da Positive Ventures, escreveu que, com a elasticidade da lógica, quase toda atividade econômica poderia ser considerada como de impacto. “A pergunta que se impõe é: é disso que estamos falando quando falamos em impacto? Ou estamos diluindo o conceito até que ele perca qualquer poder analítico ou transformador?”, questiona.
Ele explica que o investimento de impacto nasce da intencionalidade de gerar externalidades positivas relevantes, “não como efeito colateral hipotético, mas como propósito central e mensurável da atividade empresarial”.
Para os gestores da Vox, a construção lógica da carta denota o quão pouco versados eles são em ferramentas como teorias de mudança e sistemas de gestão e mensuração de impacto. “Não conseguimos, por mais que tentássemos, incluir uma mina em um portfólio de impacto. Nunca seria um investimento que a Vox faria”, dizem Izzo e Ribeiro.
Em exercício hipotético, os gestores explicam que a mina em questão precisaria responder perguntas sobre qualidade e segurança de trabalho ofertados e qual o nível de investimento em saúde em segurança em relação a seus pares.
“Se lembrarmos os desastres ambientais (e fatais) causados pelas ações da mineração em Mariana e Brumadinho, o questionário relacionado a segurança de barragens, balanço hídrico, tratamento de rejeito, planos de engajamento com comunidades do entorno, inventário de espécies do bioma afetado, entre outros, é ainda mais extenso”, explicaram os gestores da Vox.
O rompimento da barragem da Samarco, controlada pela brasileira Vale e a inglesa BHP, ocorrido em 2015 em Mariana (MG), é considerado o maior desastre ambiental da história do Brasil. Um novo rompimento de uma barragem da Vale ocorreu em 2018, desta vez em Brumadinho (MG).
Padronização e mensuração
A Spectra aponta que um dos grandes desafios dos investimentos de impacto está na tentativa de padronizar aquilo que, na sua visão, não é padronizável. “Na nossa visão, esse dilema é irresolvível. Isso porque os critérios relacionados a impacto ou ESG são baseados em valores morais – que, por natureza, variam de pessoa para pessoa, sem que exista uma resposta correta”, diz a carta.
“No capitalismo, olha-se para lucro. É a mesma moeda. No mundo do impacto são moedas diferentes, o que dificulta também a medição de impacto”, afirma Kanitz. Escolher entre investir em um negócio que contribui para a redução do desmatamento da Amazônia ou diminuir a fome no mundo é uma questão moral, segundo o gestor.
Os sócios da Vox afirmam que “todas as atividades econômicas e sociais são baseadas em valores morais” e que “essa crença na amoralidade do dinheiro diminui o papel do investidor ao de um mero espectador dos debates da sociedade”.
Eles destacam a ideia da Spectra de que tudo o que é legal (no sentido de dentro da lei) e que pode ser mensurado dentro de um sistema de preços é amoral. E fazem um paralelo histórico: antes da abolição da escravatura, o noticiário econômico e as colunas de opinião da época eram permeados por debates sobre a legitimidade dos ganhos obtidos em fazendas por meio do uso de trabalho escravo.
“Um investidor da época poderia argumentar que não havia nada de ilegal em financiar um moinho, ele era um mero alocador de recursos em uma atividade que, naquele momento, não só era aceita, como pagava bons retornos”, escrevem os executivos da Vox.
Para a Spectra, a ausência de padronização compromete significativamente a comparabilidade e a eficiência dos modelos de investimentos de impacto. “Na nossa visão, esse dilema é irresolvível.”
Os gestores de impacto reconhecem que há desafios, mas que isso não invalida o esforço do setor. “O fato de ainda ser difícil comparar não invalida a essência, nem o propósito dessa classe de ativos”, diz Vilela, da Rise. Ele destaca que em temas como a descarbonização há metodologias científicas amplamente aceitas e indicadores claros que facilitam as comparações, por exemplo.
Menezes, sócio da Positive, lembra que mesmo no universo puramente financeiro, empresas com o mesmo bottom-line (lucro) recebem valuations distintos, por conta de percepções sobre risco, potencial, governança ou narrativa. “No caso dos investimentos de impacto, a complexidade é maior e inerente”, diz. Ele explica que é mesmo diferente avaliar o valor do acesso ampliado a serviços de saúde a preços acessíveis e o desafio de descarbonizar uma indústria intensiva em emissões.
“Essa diversidade de causas, geografias e métricas dificulta, sim, a comparação direta, mas isso não invalida o esforço. Pelo contrário, torna-o ainda mais necessário.”