INVESTIMENTOS

Atmos critica ‘verdades’ sobre a transição energética – e tem tese contestada

Gestora de R$ 15 bilhões defende transição baseada em lucro; grupo de think tanks de energia questiona abordagem e ceticismo

Atmos critica ‘verdades’ sobre a transição energética – e tem tese contestada

Menos protagonismo para a energia solar, eólica e até para o etanol. No lugar, mais oferta de gás natural e carros elétricos nas ruas. É esse o cenário no qual a gestora Atmos Capital, com R$ 15 bilhões sob gestão, aposta suas fichas para a transição energética no Brasil. Com uma condição: caso o retorno financeiro ganhe peso nas discussões ambientais.

Em uma série de três cartas, a gestora questiona a narrativa de que o Brasil é um grande fornecedor de energia limpa e barata, além de outras soluções verdes. A descarbonização da frota com uso de etanol e o potencial de o país se tornar um exportador de hidrogênio verde seriam parte desse “mito”.

A visão da casa provocou a reação de think tanks de energia, que questionaram sua tese. Eles reconhecem a contribuição da gestora para um debate que o país precisa fazer, mas criticam a abordagem. 

“O que une as três cartas é um tom de cautela, ceticismo e pragmatismo. Mas no contexto de um sistema energético global em rápida transformação, cautela sem adaptação se torna barreira – não escudo”, diz a carta assinada por quatro PhDs: os brasileiros Jorge Arbache, professor de economia da Universidade de Brasília; e Rosana dos Santos, diretora executiva do Instituto E+ Transição Energética; a tcheca Rabia Ferroukhi, diretora do International Network of Energy Transition; o americano Joseph Ryan, diretor executivo da Crux Alliance. 

A carta-resposta se chama “O ceticismo não vai construir o futuro energético do Brasil: uma resposta às cartas da Atmos Capital” e foi publicada esta semana no site da Crux Alliance, formada por seis organizações sem fins lucrativos para incidir sobre políticas públicas climáticas, com foco em energia. 

Procurada pelo Reset, a Atmos avaliou que as críticas às suas cartas foram feitas com solidez técnica e que demonstram uma visão distinta em relação ao funcionamento do mercado. “Essa diferença de visão reflete, em última instância, uma dualidade de pensamento que parece estar ancorada em crenças estruturais profundamente enraizadas de ambos os lados”, disse Bruno Levacov, sócio e co-fundador da Atmos. 

Transição baseada no lucro

O foco da Atmos, como esperado, é a multiplicação de capital. Assim, defende escolhas de transição baseadas no retorno financeiro. 

A tese apresentada ao longo das 33 páginas dos três PDFs discorre sobre os aspectos socioeconômicos de como a humanidade produz, consome e escolhe fontes de energia. Segundo a gestora, a história das transições energéticas revela adaptações motivadas por escassez, demanda ou eficiência – não por questões ambientais.

Em sua visão, a transição energética é inevitável e urgente, mas estaria cercada de ilusões e desejos. O desafio estaria em estruturar incentivos corretos, baseados na realidade econômica, e não em “discursos”.

“Elas [as cartas] representam uma visão centrada no investidor – com foco legítimo no risco de capital, realismo econômico e disciplina de mercado. Essa perspectiva é essencial. Mas não é o quadro completo”, diz a resposta dos think tanks.

Eles propõem abordar o assunto sob uma visão de interesse público: o do papel de formuladores de políticas públicas e reguladores na construção e alinhamento dos mercados. 

“Nosso otimismo não é ingênuo, mas fundamentado em realidades técnicas e tendências globais. Do nosso ponto de vista, o maior risco para o Brasil não é avançar rápido demais – é ficar parado.”

Petróleo

A Atmos avalia que a narrativa sobre a transição energética se tornou simplista e descolada da realidade técnica e econômica. Para a gestora, reduzir emissões exige que soluções sejam economicamente competitivas e geopoliticamente viáveis. 

E traz um histórico para defender seu ponto. A redução das emissões nos EUA teria se dado principalmente pelo fracking (técnica para extrair petróleo e gás de formações rochosas profundas) e uso de gás natural, não por renováveis, entre 2007 e 2023. Na Europa, o abandono da energia nuclear “por ideologia” teria tornado a região dependente (e vulnerável) do gás russo. Já o Brasil teria respondido às crises do petróleo com hidrelétricas e etanol, ações motivadas por segurança energética, não por carbono.

“As discussões insistem em bordões empurrados de cima para baixo: ‘a humanidade não pode mais queimar combustíveis fósseis’”, diz a Atmos, mas estariam esquecendo que o desenvolvimento da sociedade moderna se baseia sobre eles. 

E aqui sobrou crítica para os participantes das Conferências do Clima da ONU. “Sem contar o excesso de gente gastando carbono para convencer o mundo a gastar menos carbono. Definição clássica do tragicômico”, escreveu a gestora, em referência às mais de 80 mil pessoas que se deslocaram até a COP28, em Dubai, em 2023. “Não interessa quantas COPs organizemos, se as alternativas postas não oferecem competitividade ou soberania, a reflexão seguirá sobrepondo a ação.”

Os críticos da tese avaliam que no cerne da análise da Atmos está uma ideia que é recorrente: a de que os combustíveis fósseis persistem porque os mercados os “escolhem”. 

“Há verdade nisso. Mas esse enquadramento darwinista é incompleto. Mercados não são leis naturais – eles são arquitetados. Refletem políticas públicas, regulamentações, trajetórias institucionais e o contexto político que os moldou”, diz a carta dos PhDs. 

Eles lembram que o setor de combustíveis fósseis foi histórico beneficiário de subsídios e externalidades não precificadas e que tecnologias limpas se tornaram competitivas graças a décadas de investimento público, em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e regulação.  De acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), os subsídios anuais aos combustíveis fósseis atingiram US$ 7 trilhões em 2022, 7% do PIB global.

Também apontam que a gestora ignora uma tendência mundial: o avanço na precificação do carbono seja via impostos, na taxação de importação e sistemas de cap and trade – como o que o Brasil acabou de criar. Entre os mecanismos citados está o ajuste de preço sobre a importação de produtos que emitem muito carbono da União Europeia, que entra em vigor em 2026

Para a Crux Alliance, as cartas da Atmos têm alguma razão em reclamar do fervor de ambientalistas, mas o apego ideológico não seria exclusividade dos defensores da transição. 

Paradoxo brasileiro

A posição do Brasil em relação aos fósseis é descrita como um “dilema” pela Atmos, uma vez que o país é uma “celebridade da transição” e, ao mesmo tempo, um dos maiores produtores de petróleo do mundo. “Como devemos lidar com essa tensão entre continuar produzindo hidrocarbonetos ou migrar de vez para esse papel de potência verde?”, questiona. 

“A questão não é se é possível fazer ambos. A questão é se continuar a expandir a infraestrutura fóssil em um mundo em processo de descarbonização é uma aposta prudente de longo prazo para o Brasil como sociedade”, diz a carta-resposta do site da Crux. 

Os autores observam que a demanda mundial por petróleo deve atingir o pico já em 2030, segundo projeção da Agência Internacional de Energia (AIE), e que consolidar novos investimentos fósseis hoje pode levar à obsolescência de capital e ao enfraquecimento da vantagem comparativa do Brasil na economia verde do futuro. 

Principal concorrente da gasolina no Brasil, o etanol é um ‘case’ de biocombustível reconhecido internacionalmente. A Atmos faz uma comparação entre carros híbridos e elétricos. “É importante lembrar que o EV é mais eficiente do que o carro à combustão mesmo quando alimentado por eletricidade gerada a partir de termelétricas fósseis”, diz a Atmos. “No caso do grid brasileiro, com sua maciça penetração de fontes renováveis, a  vantagem se amplia.”

Aqui, a conta da Atmos é a seguinte: um carro elétrico médio emite 15 gramas de dióxido de carbono equivalente por quilômetro (gCO2e/km), enquanto um veículo à combustão emite 65 gCO2e/km utilizando o etanol e 200 gCO2e/km utilizando gasolina. No caso do elétrico, considera a emissão média da eletricidade brasileira nos últimos 5 anos e uma perda combinada de 27% nos sistemas de transmissão, distribuição e recarga. Essa informação está numa rota de rodapé, sem fonte.

Segundo a gestora, a narrativa dominante no Brasil exalta os híbridos com etanol, mas os dados muitas vezes seriam tecnicamente frágeis e enviesados – e a casa traz alguns exemplos na terceira carta. Ela crítica mais políticas públicas em favor do etanol, ainda que reconheça o papel do segmento na defesa da soberania e da complementaridade da matriz energética. 

A carta-resposta das think tanks não comenta a questão do etanol e concorda que a transição para veículos elétricos não é apenas tecnicamente viável, mas econômica e estrategicamente racional para o Brasil. 

“Mas como a própria Atmos nota, interesses políticos e econômicos arraigados – em cadeias de suprimentos, sindicatos trabalhistas e indústrias estabelecidas – podem retardar ou distorcer essa transição. Reconhecer essas barreiras não enfraquece o argumento a favor dos veículos elétricos; apenas reforça a necessidade de alinhamento político, planejamento industrial e coordenação público-privada para garantir que esse caminho racional não seja bloqueado pela inércia.”

A Atmos avalia que o Brasil não tem folga fiscal para subsidiar energia limpa como EUA e Europa. O verdadeiro incentivo à energia barata seria, então, uma contração fiscal estruturada, que derrubasse os juros de longo prazo.

Investimentos

Neste contexto, a gestora avalia alguns mercados de energia: solar, hidrogênio verde, gás natural e eletrificação da frota de carros. E mostra como os efeitos da transição energética impactam empresas, investimentos e estruturas de mercado.

A visão é de que a energia solar é competitiva e que sua curva de aprendizado reduziu custos drasticamente, impulsionada principalmente pela China. Porém, aponta que o excesso de geração em certos horários leva a um desperdício de energia, elevando os custos. Baterias são apontadas como possíveis soluções, mas ainda são caras. Outro gargalo é a infraestrutura de transmissão, que precisa ser ampliada, outro custo elevado.

Para garantir a estabilidade na geração de energia, e abrir espaço para uma transição ampla, a Atmos defende o gás natural como um fornecimento contínuo, reduzindo os prejuízos da intermitência. Ele também teria potencial de diminuir as emissões, ao substituir outros fósseis mais poluentes. Para os gestores, há um grande potencial para o mercado de gás no Brasil, decorrente de reformas regulatórias e pequenos incentivos dos últimos anos.

A Atmos tem duas grandes posições em empresas do segmento: Eneva e Compass – esta última tida como a “jóia da coroa” do grupo Cosan. Na terceira carta, a gestora diz que a Eneva integra produção, geração e distribuição de gás, monetizando reservas que antes seriam desperdiçadas. E que a Compass se destaca ao romper o monopólio da Petrobras via regaseificação e distribuição.

Na tese de investimentos sobre carros elétricos, vê uma oportunidade para a Localiza, outra empresa em carteira. A lógica é de que a maior eficiência dos híbridos indica um futuro no qual o “share de quilômetros rodados” seja cada vez mais elétrico no setor de locação de veículos. 

No caso do hidrogênio verde, a gestora avalia os desafios físicos e econômicos: baixa densidade volumétrica; altos custos de produção, liquefação, transporte e reconversão; e baixa eficiência energética global (só 20% da energia original chega ao destino final). Segundo a Atmos, projetos no Brasil somam investimentos de US$ 30 bilhões, com muitos incentivos públicos, mas pouca viabilidade econômica no cenário atual.