INVESTIMENTOS

Armas de destruição em massa estão se multiplicando em fundos ESG

Maior indústria de fundos sustentável do mundo, a Europa tem metade das carteiras com exposição a fabricantes de armas nucleares

Armas de destruição em massa estão se multiplicando em fundos ESG

As armas mais mortais já fabricadas na história estão se proliferando nas carteiras de fundos que buscam investir de acordo com princípios ambientais, sociais e de governança (ESG) na Europa. 

Gestores e reguladores europeus têm tentado ampliar o conceito do rótulo, historicamente associado ao investimento ético e responsável, diante do aumento de seus orçamentos de defesa para responder à crescente tensão com a Rússia . 

A indústria de fundos ESG da Europa é, de longe, a maior do mundo, com US$ 9 trilhões em ativos sob gestão. Desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro de 2022, o número de fundos de ações ESG expostos à indústria de armas nucleares aumentou 89%, segundo um levantamento da Bloomberg.

Dos 4.584 fundos de ações classificados como ESG na Europa, 2.538 têm aproximadamente US$ 20 bilhões alocados em empresas que fabricam, fornecem ou transportam armas nucleares. Esse número era de 1.339 há três anos. 

Essas participações representam apenas uma fração do setor de defesa, mas o movimento significa que cerca de metade da indústria de fundos ESG agora está alocando algum capital em armas nucleares.

O levantamento considerou fundos que “promovem” ESG – incorporam fatores de sustentabilidade sem que esse seja o foco principal – e fundos com “objetivo” ESG. 

O movimento é visto por seus críticos como a perversão máxima da agenda. Ele expõe a drástica evolução das práticas de investimento ambiental, social e de governança desde que o termo foi cunhado, há mais de duas décadas, por uma equipe apoiada pelas Nações Unidas. 

À medida que as tensões entre a Europa e a Rússia aumentam, a ideia do que ESG pode representar passou de parques eólicos para armas de destruição em massa com uma “facilidade impressionante”, observa a Bloomberg.

“Um investimento sustentável deveria se basear no princípio de ‘não causar danos’”, disse Sasja Beslik, diretor de estratégia da SDG Impact Japan, gestora sediada no primeiro país a sofrer um ataque nuclear, há 80 anos. “E, sabe, o uso final de armas nucleares causa muitos danos”, disse à Bloomberg. 

Um argumento recorrente é de que esse tipo de capital precisa ser canalizado para a estabilidade econômica e social, não de defesa. Por isso, a Allianz Global Investors, gestora com US$ 650 bilhões em ativos, proibiu neste ano a aplicação em fabricantes de armas nucleares em fundos registrados que promovem ESG.

O tema foi alvo de apelos, nesta semana, durante a Assembleia Geral da ONU, em Nova York. O presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, pediu que países reduzam gastos com guerras e ampliem a ajuda à inclusão social. 

“Bombas e armas nucleares não vão nos proteger da crise climática”, disse, dirigindo-se à presidente da Assembleia Geral da ONU, Annalena Baerbock – ex-ministra das Relações Exteriores e figura importante do Partido Verde alemão. 

Lost in translation?

Se antes armas de destruição eram excluídas e vistas como algo “ruim” nos investimentos, a ameaça ao continente europeu fez com que o armamento fosse considerado uma necessidade, explicou Benjamin Braun, professor da Escola de Economia e Ciência Política de Londres.

Num mundo que ainda definia padrões e métricas de aplicações ESG, a exclusão de dois setores controversos por natureza – fumo e armas – do universo de investimentos sustentáveis era um dos poucos consensos atingidos. 

Mas a coisa começou a mudar com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Á época, diversos gestores anunciaram a revisão de suas políticas de não-investimento em fabricantes de armas, dada a nova realidade geopolítica do continente.

Paul Clements-Hunt, ex-funcionário da ONU que ajudou a cunhar o termo ESG em 2004, disse à Bloomberg que o rótulo é amplamente mal compreendido. Para ele, o conceito é sobre “materialidade e dever fiduciário”, e não sobre moral, ética ou investimento socialmente responsável. 

Em bom português: ele diz que é possível “acomodar” o investimento em ativos de defesa e até mesmo armas nucleares.

Gestores de fundos ESG ouvidos pela Bloomberg disseram que não buscam investir em armas nucleares deliberadamente, mas a situação geopolítica torna inadequado manter proibições totais. “Não estamos fazendo isso para investir em armas nucleares”, disse Jens Munch Holst, CEO da gestora de previdência ​​Akademiker Pension. 

“Por outro lado, não queremos que uma pequena parcela da receita relacionada às atividades com armas nucleares nos impeça de fornecer suporte de capital para ajudar a construir defesas europeias”, disse. 

Há, porém, quem defenda deliberadamente o investimento. “No novo ESG, estamos falando em contribuir para a sociedade por meio do fortalecimento da autonomia energética e da defesa da Europa: energia, segurança e geoestratégia”, afirmou Stephane Boujnah, CEO da Euronext, conglomerado de bolsas de valores da Europa, à Bloomberg. 

Segundo ele, sociedade civil e investidores têm expressado isso nos últimos meses. “Há desejo entre os cidadãos de servir o seu país à sua maneira”, disse. 

Muitos gestores acabam se expondo por meio de fundos de índices passivos que têm fabricantes de armamento em sua composição. Isso dá aos gestores uma “negação plausível”: eles podem dizer que não escolheram diretamente investir nessas empresas, segundo Braun, da Escola de Economia de Londres. 

Um relatório do Center for Strategic & International Studies estima que o conflito na Ucrânia já matou 250 mil russos e entre 60 mil e 100 mil ucranianos. Os países não divulgam dados oficiais completos. 

Contraditório

A Comissão Europeia tem tomado medidas para garantir que as regulamentações destinadas a apoiar investimentos sustentáveis ​​não entrem em conflito com os esforços do bloco para injetar capital em sua indústria de defesa.

Em um documento obtido pela Bloomberg, o braço executivo da União Europeia disse que quer “prevenir qualquer discriminação indevida” contra a indústria de defesa em decisões de investimento. A orientação se aplica a diversas regulamentações que compõem sua estrutura de investimento sustentável, incluindo a Diretiva de Due Diligence em Sustentabilidade Corporativa. 

Os Estados-membros da UE são signatários do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, de 1968, que proíbe exportações para nações fora do acordo. 

O Regulamento de Divulgação de Finanças Sustentáveis do bloco não classifica armas nucleares como “armas controversas”, que violariam normas internacionais Assim, ele não as exclui, mas obriga bancos e gestoras a explicar de que forma esses investimentos se enquadram em critérios de sustentabilidade. 

O fundo soberano da Noruega – um dos maiores do mundo, com US$ 1,9 trilhão em ativos –, está no meio desse fogo cruzado. As suas regras proíbem a aplicação nesse tipo de ativo por avaliar que o “uso normal” de armas nucleares viola princípios humanitários. Empresas como BAE, Airbus e Safran estão na lista proibida do fundo. Mas agora, o Partido Conservador norueguês sugeriu revisar essas exclusões diante das ameaças militares atuais.