O ano ainda não terminou e o Brasil já bateu recorde na emissão de títulos e empréstimos verdes ou sustentáveis, tirando parte do atraso do país em relação a uma tendência que já vinha se consolidando há anos no mercado internacional, notadamente na Europa.
O movimento reflete não só a demanda crescente dos investidores por produtos temáticos, como também uma corrida das empresas para se posicionarem como mais sustentáveis no mercado, num momento em que os critérios ambientais, sociais e de governança (ESG) ganharam protagonismo.
No acumulado do ano até 16 de setembro, foram emitidos R$ 15,5 bilhões em títulos rotulados tanto no mercado interno quanto no exterior, volume 55% superior aos R$ 9,7 bilhões de 2019, segundo levantamento realizado pela Sitawi Finanças do Bem.
O número já é superior mesmo considerando a desvalorização do real no período: em dólares, foram US$ 3 bilhões em emissões, contra US$ 2,2 bilhões. Foram ao menos 20 operações, contra 19 mapeados em 2019 como um todo.
O levantamento inclui tanto green bonds com benefícios ambientais quanto os social bonds, com benefícios sociais, além dos títulos sustentáveis, que reúnem ambas as características. E leva em conta também os títulos e empréstimos ESG-pós fixados, em que os juros cobrados por bancos ou outro tipo de investidores estão ligados a metas sociais e ambientais a serem cumpridas pelas empresas tomadoras.
A conta deve crescer nos próximos meses.
Há ao menos duas operações rotuladas já na rua. No mercado interno, a Eneva, de gás natural, está na fase final de uma captação de debêntures de R$ 825 milhões, voltada também para investidores de varejo, que deve contar um um selo de ‘título de transição’.
Segundo apurou o Reset, a FS Bioenergia, maior produtora de etanol de milho do país, está em roadshow para captar cerca de US$ 500 milhões no mercado externo.
“O volume deste ano é relevante, mas para além dos números, dá para notar uma clara diferença de mindset, tanto de emissores quanto investidores”, diz Pedro Frade Rodrigues, chefe de renda fixa internacional do Itaú BBA.
“Está todo mundo engajado, tentando entender melhor o assunto e sofisticando mais as discussões.”
O valor de emissões externas deste ano soma US$ 1,6 bilhão, menos que os US$ 2,2 bilhões de 2017, quando Klabin, BNDES e Fibria lançaram bônus sustentáveis polpudos. Mas, em 2020, um ano com alguns meses de janela de emissões fechada no auge da pandemia, já foram seis operações.
“O mercado está demandado”, diz Sandro Marcondes, diretor de global debt financing do Santander Brasil.
Abrindo a porteira
Segundo ele, além dos green e social bonds, há uma fila de interessados em criar um framework próprio para seguir o mesmo caminho da Suzano, que captou US$ 750 milhões em uma emissão pioneira de sustainability-linked bonds (SLB).
Nesse tipo de título, o uso dos recursos é livre e o os juros estão ligados ao cumprimento de metas sustentáveis gerais da companhia, enquanto nos green bonds o dinheiro captado precisa ser usados em projetos específicos.
Isso, em teoria, endereça dois problemas. Primeiro, não engessa o uso do capital e dá muito mais flexibilidade para as empresas. Além disso, amplia o escopo de empresas e setores que podem ser candidatos a emitir títulos carimbados.
Globalmente, o mercado de empréstimos ligados a metas ESG corporativas, os ‘ESG-linked loans’, chegou a US$ 100 bi em dois anos. “A emissão da Suzano abriu a porteira para as empresas brasileiras”, diz Gustavo Pimentel, da Sitawi.
Além dos títulos de dívida verdes, têm crescido os empréstimos com condicionantes socioambientais concedidos por bancos.
O Santander tem sido ativo nesse portfólio, com empréstimos condicionados para FS Bioenergia, Frimesa, Marfrig e a LAR Cooperativa, de produtores rurais.
“É uma forma de criarmos incentivos para a governança interna das empresas na nossa carteira”, diz Karine Bueno, superintendente de desenvolvimento sustentável do Santander. “A ideia é não só identificar as empresas com boas práticas, como trabalhar junto com os clientes para ajudá-los a fazer a transição.”
A sucroalcooleira Tereos também levantou US$ 105 milhões com um consórcio de sete bancos estrangeiros no começo do ano com remuneração ligada a metas de sustentabilidade.
Saindo do nicho
Ainda que as emissões de títulos rotulados sigam concentradas em setores cujo core business tem impactos ambientais positivos, como o florestal e o de energias renováveis, uma novidade deste ano é que o escopo começou a se abrir.
A Rumo emitiu um green bond de US$ 500 milhões para melhorar a eficiência de suas locomotivas, numa primeira operação no setor de transporte. E há empresas do setor de mobilidade urbana querendo seguir o mesmo caminho no mercado interno.
Os bancos privados também começaram a acessar a piscina de recursos rotulados. No começo do ano, o BV levantou US$ 50 milhões com um investidor externo para empréstimos voltados a energia renovável.
E, nesta semana, o ABC Brasil levantou R$ 525 milhões com o BID Invest para ampliar o acesso a crédito para médias empresas, no primeiro social bond do país (ainda que o teto de R$ 250 milhões de faturamento para definição de PMEs e os critérios abrangentes de alocação de recursos tenham chamado a atenção de alguns especialistas e investidores no mercado.)
Na diversificação de conceitos, a Marfrig já tinha inaugurado o de ‘títulos de transição’, voltado para empresas grandes emissoras de carbono, mas que estão querendo melhorar suas práticas, no ano passado.
A Eneva está seguindo o mesmo caminho agora com projetos de ecoeficiência para usinas termelétricas movidas a gás natural.
“Todo mundo está querendo melhorar as práticas. Nos roadshows, mesmo de emissões que não são verdes, as empresas têm sido muito mais questionadas sobre externalidades socioambientais negativas e como elas se movimentam para gerar impactos positivos”, diz Philip Searson, chefe de renda fixa do Bradesco BBI.
Preço e demanda dos investidores
Ainda que não haja consenso sobre uma precificação melhor para títulos verdes em relação aos tradicionais, as empresas percebem um efeito de reputação ao contar com emissões verdes, o que vem ganhando relevância no mercado num momento em que cresce a preocupação dos investidores com esses fatores.
“Tem aumentado muito a demanda por parte dos emissores. O tema ESG vem ganhando relevância e esses títulos projetam uma imagem. Não podem ser só isso, mas querendo ou não, são um instrumento de marketing”, diz Daniel Vaz, diretor de renda fixa do BTG Pactual.
A emissão recente da Suzano ajudou a dar um outro incentivo ao mercado.
Em meio à grande liquidez disponível no mercado, não é possível cravar uma relação de causa e efeito. Mas os banqueiros que assessoraram a operação avaliam que o caráter verde ajudou a companhia, que tem grau de investimento e é emissora frequente, a conseguir o menor juro da sua história: 3,95% ao ano.
“Existe todo tipo de investidor, mas cada vez mais o apelo de sustentabilidade está permeando as decisões dos gestores de portfólio”, diz Marcondes, do Santander. “Na prática, conforme esse mercado se desenvolve isso vai acabar se traduzindo em pressão de preço.”
Searson, do Bradesco BBI, começa a perceber um pouco mais de sensibilidade dos investidores nacionais de fundos de infraestrutura a ativos com pegada socioambiental. “Quando o mercado está seco [de papéis] não faz muita diferença, mas, quando está demandado, é um diferencial”, diz.
Mariana Oiticica, sócia da área de wealth management e de investimento de impacto do BTG Pactual, também vê uma demanda crescente por parte dos clientes endinheirados do banco. “Antes era uma coisa restrita a segunda geração das famílias, mas paulatinamente, tem crescido também o interesse dos clientes na faixa dos 50, 60 anos, que pedem para ser alocados em emissão de títulos sustentáveis”.
Um gestor de crédito doméstico que está desenhando um produto com foco ESG diz, no entanto, que o rótulo do título, por si só, não é um diferencial.
“Para além da característica dos projetos, do título, olhamos muito mais o compromisso das empresas emissoras com o capitalismo de stakeholder. Às vezes tem um projeto que atende todas essas características, mas a empresa não necessariamente tem as práticas alinhadas, especialmente na governança”, diz. “Aí não para de pé.”