Celso Athayde subiu ao palco do Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, sentindo-se um pouco deslocado. No local, circulavam Bill Gates e François Bonnici, da Fundação Schwab, que o elegeu um dos 15 empreendedores de impacto e inovação de 2022. Mesmo num espaço de reconhecimento, o empresário diz que ainda sentia uma distância entre ele e as figuras famosas da plateia.
“Na favela ninguém fala ‘network’, ‘trade’ ou ‘share’. Esta é a linguagem do asfalto. Lá se fala favelês, se fala ‘vamos fazer nossos corres’. É um ambiente de escassez onde empreender não é uma opção, é uma forma de sobrevivência”, afirma.
Criado nas ruas das favelas de Senador Camará, zona oeste do Rio de Janeiro, Celso Athayde já viveu na rua, ajudou a mãe num tabuleiro de doces, foi vigilante, camelô, produtor de festas e empresário de MV Bill e dos Racionais MC’s.
Mas só nos anos 2000 deu o passo decisivo que o transformaria numa das principais lideranças negras do país da atualidade — e também pavimentaria o caminho do empreendedorismo pelo qual foi reconhecido em maio.
Foi quando cofundou a Central Única das Favelas (Cufa), organização não-governamental nascida na Cidade de Deus, no Rio, e que se tornou uma poderosa rede de apoio às necessidades prementes das periferias, com presença nacional em 5 mil favelas.
Embora até hoje seu nome se confunda com a Cufa, desde 2015 Athayde deixou formalmente a direção da ONG para se dedicar à criação de negócios em série.
Hoje ele é o CEO da Favela Holding, um grupo de 24 empresas que faturou R$ 178 milhões em 2021 e tem a previsão de alcançar R$ 1 bilhão em receita nos próximos três anos, empregando mais de 32 mil trabalhadores.
Embora sejam coisas apartadas, a origem dos negócios de Athayde está intimamente ligada à Cufa — e até hoje os limites entre as duas partes não são claros para quem vê de fora. Não só pela onipresença de Athayde, mas também pelas relações estabelecidas.
Receita própria
O empresário conta que, em grande parte, o que motivou seu desligamento da ONG foi o desejo de criar negócios que trouxessem estabilidade financeira à organização, que sempre dependeu de editais, leis de fomento e mudanças políticas.
“Ficávamos reféns do governo. Injetei muito do meu próprio dinheiro na ONG e não me sentia à vontade em cobrar”, diz Athayde em conversa com o Reset. “Sair da Cufa foi a estratégia para me desenvolver como empreendedor e para poder tirar a Cufa das relações tensas com recursos públicos.”
A capilaridade da própria Cufa, então já presente em centenas de favelas, apontou um caminho: uma parceria com a multinacional de bens de consumo Procter & Gamble demandou a distribuição de produtos pelas comunidades do Rio de Janeiro.
Assim nasceu a Favela Log, a empresa mais antiga da holding e também a de maior faturamento, dedicada a fazer entregas nas comunidades.
Ao buscar mais parcerias com empresas para o negócio de entregas, Celso Athayde era indagado sobre dados de consumo nas comunidades. Para responder a essas questões foi criado o Data Favela, uma parceria com o Data Popular e o Instituto Locomotiva, de Renato Meirelles.
“Uma coisa foi puxando a outra e nos tornamos um guarda-chuva de tudo o que é relevante para atender a favela.”
Estrutura
A Favela Holding se expandiu por diferentes áreas tendo como principal ativo o conhecimento e acesso territorial de Athayde.
As subsidiárias atuam em segmentos como turismo, publicidade, audiovisual, telefonia e recursos humanos (ver tabela). Algumas são 100% controladas pela Favela Holding, caso da InFavela, agência de live marketing.
Metade delas são joint-ventures entre a holding e algum grupo que já atuava antes no mesmo segmento de negócios e que encontrou na Favela Holding uma forma de acessar o mercado das comunidades com mais propriedade. É o caso da Favela Vai Voando, em sociedade com a agência de viagens Flytour.
A composição societária dessas empresas não é divulgada, mas, segundo Athayde, em geral, o capital costuma ser dividido meio a meio.
Já o capital da Favela Holding está 100% nas mãos da família Athayde e, além dele, seus filhos ocupam cargos na direção. Vinicius é diretor de tecnologia, Athayde Jr. está à frente do marketing e Thales se tornará em agosto o número dois do grupo, como vice-presidente.
A mudança faz parte do processo sucessório. Com 60 anos, Celso Athayde está passando o bastão da presidência para Leonardo Ribeiro, hoje diretor geral de negócios.
“Na prática, o Thales e o Léo Ribeiro já estão à frente de toda a operação. Quando se trata de favelas, ter conhecimento de negócios das universidades não é o bastante, tem que conhecer a favela para fechar a outra ponta”, afirma ele.
Impacto ou caô social?
Athayde costuma ressaltar as qualidades do modelo que criou ao mesmo tempo em que direciona críticas a alguns dos negócios que se auto intitulam de impacto social.
“A Favela Holding é um negócio de impacto social na origem e no destino. Há quem se apresente como empreendimento social porque emprega favelados. Mas o lucro desses negócios vai para o asfalto e o que fica na favela é o baixo salário dos empregados”, disse, no evento Download Davos 2022, que ocorreu em São Paulo no início deste mês para compartilhar experiências do encontro que ocorreu em maio na Suíça.
Em tom jocoso, completa que, em ‘favelês’, esse modelo se chama “caô social”.
“A empregabilidade e a lucratividade devem aparecer na favela, para que este território seja transformado”, sentencia.
No caso da Favela Holding, os lucros são auferidos pela família Athayde e não existe um acordo formal pré-estabelecido de repasses obrigatórios à Cufa.
Mas, segundo Athayde, em todos os negócios a ONG recebe alguma coisa, direta ou indiretamente, em valores que são definidos caso a caso.
O que ele chama de participação direta são negócios em que a Cufa é parceira formal, com direito a um percentual das vendas ou outra forma de remuneração. É o caso, diz ele, do Alô Social, empresa de telefonia que paga à Cufa pelo licenciamento da sua marca.
No caso de atividades não consideradas compatíveis com a Cufa, a Favela Holding faz doações de valores negociados com a direção da ONG.
“Continuo trabalhando em parceria com a direção da Cufa — Preto Zezé, Kalyne Lima e todos os membros da instituição. Nós dialogamos o tempo todo. Eu ainda faço parte informalmente do seu conselho e as nossas decisões acabam sendo no dia-a-dia”, diz Athayde.
Além das doações em dinheiro, existem parcerias de trabalhos. As empresas da holding são o destino de boa parte das pessoas que integram o Projeto Recomeço, iniciativa da Cufa para reinserção de ex-detentos no mercado de trabalho, por exemplo.
Unicórnio da quebrada
Quando deixar o cargo de CEO da holding agora em agosto, Celso Athayde terá um pé em cada canoa.
Seguirá fazendo a prospecção de parcerias com empresas para a holding ao mesmo tempo em que se mudará para Nova York para trabalhar na sede internacional da Cufa, que fica no bairro do Bronx.
Nos últimos tempos, ele tem alimentado duas ideias fixas.
A mudança para os Estados Unidos servirá para dar curso a uma delas: desde a sua participação em Davos, Athayde decidiu que quer expandir a atuação da ONG para muito mais do que os atuais 20 países. A decisão de migrar para Nova York foi anunciada para a plateia do evento Download Davos 2022 há poucas semanas.
“Se os problemas são globais, as soluções podem ser também. Vamos ocupar os espaços. Quero arrumar confusão em outros lugares. Uma confusão global”, disse Athayde ao falar do novo destino.
A segunda ideia que não sai da sua cabeça e tem sido repetida a interlocutores é descobrir e investir no primeiro unicórnio da favela e levá-lo à bolsa de valores.
Para isso, recentemente criou o Favela Fundos, braço de capital de risco que já captou R$ 50 milhões, com cheques dele próprio e de sócios das demais empresas da holding. Em parceria com a Fundação Dom Cabral, 300 proponentes de startups estão recebendo formação e mentoria. Ao final do programa, os melhores projetos receberão investimentos do venture capital da quebrada.