OPINIÃO: Indústria da moda precisa olhar a sério para a cadeia produtiva 

Setor poderia passar de cúmplice do impacto climático para incentivador de soluções, mas avanço é lento e cheio de contradições, escreve Beto Bina

Plantação de algodão com seis máquinas fazendo a colheita.
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A grande maioria do impacto de uma empresa não está nas suas instalações ou veículos, mas nas suas cadeias produtivas. Mais precisamente, na média, o impacto indireto (que leva em consideração a origem e o destino de materiais) é 11,4 vezes maior do que o impacto direto, de acordo com CDP

Ou seja, uma marca de moda que utiliza prioritariamente algodão tem a maior parte do seu impacto na agricultura. Quem utiliza couro, tem seu impacto na pecuária. Viscose, na indústria florestal, e assim por diante. 

A moda é cúmplice do impacto dessas indústrias. Mas empresas tendem a se referir a esses impactos como externalidades, considerando-os menos relevantes, o que resulta em investimentos insuficientes para as mudanças necessárias. 

A edição mais recente do Fashion Transparency Index (FTI), que acaba de ser lançada, mostra que apenas 5% das marcas de moda divulgam esforços para oferecer capacitação ou investir na cadeia produtiva para uma ‘transição justa’ e ‘circular’ de práticas e processos. 

Além disso, segundo o relatório, que traz informações sobre práticas socioambientais das maiores marcas e varejistas de moda de todo o mundo, apenas 16% divulgam evidências de implementação da agricultura regenerativa, um aumento pequeno de 2 pontos percentuais em relação ao ano anterior. 

Regenerativo? 

A questão é que, mesmo que uma empresa invista em agricultura regenerativa, existem controvérsias da sua eficácia.

O que está acontecendo é um esvaziamento do significado do termo “regenerativo”, devido a normas frágeis e uma ambição limitada ao “menos pior”. O que poderia ser um importante diferencial da agricultura brasileira, está sendo rebaixada para uma segunda categoria de certificação. 

Na prática, grandes propriedades com uso de defensivos, monocultura, transgênico e ainda com denúncias de possível conexão com desmatamento ilegal estão no caminho para serem certificadas como “regenerativas”. 

Agricultura convencional é de grande importância para a economia brasileira, mas certificá-las como regenerativo abre precedentes para escrutínio. E a fragilidade de rigor dos fornecedores indiretos vira um prato cheio para diminuir a credibilidade da nossa agricultura e justificar medidas que dificultem a exportação. Parece que o ciclo se repete e não aprendemos com nossos erros.

Meu sonho é ver o Brasil como o grande fornecedor global de matérias-primas responsáveis e de valor agregado. Meu pesadelo é testemunhar irresponsáveis afetando negativamente agricultores orgânicos de pequena e média escala, que carecem de recursos e tecnologia. 

Esses que são os verdadeiros agricultores regenerativos não se auto intitulam como mesmo, talvez por desconhecimento ou por preferirem não pagar uma certificadora. E que bom, pois agora teriam que competir injustamente com a larga escala. Cabe recomeçar e criar uma nova forma para se diferenciar.

Sonho ou pesadelo? 

O relatório do FTI  considera as 250 maiores marcas de moda, aquelas com recursos para fazer mudanças urgentes. 

A ausência de investimento nas cadeias produtivas é sintoma de um claro problema: falta de alinhamento estratégico com os negócios. 

Apenas 51% das marcas de moda têm uma estratégia de materialidade, com projetos e metas. Somente 42% publicam relatórios anuais de progresso em relação a materiais responsáveis e apenas 7% sobre metas de zero desmatamento.

Essa situação, em que  93% das maiores empresas não apresentam progresso em direção ao zero desmatamento, enquanto agricultores que desmatam podem ser certificados como “regenerativos”, parece ser meu  pesadelo. 

No entanto, para concluir de forma positiva, há sinais de que meu sonho pode estar começando a se tornar realidade. 

Estamos testemunhando marcas de moda apoiando pequenos produtores de algodão orgânico, alocando recursos e orçamentos para agricultura, e empresas reconhecendo a importância de cadeias produtivas transparentes, mensuráveis e protagonistas das marcas, considerando-as um componente estratégico dos negócios. 

Ainda tenho esperança de que a moda possa se tornar cúmplice na realização dos sonhos coletivos que todos temos para o mundo.

* Beto Bina fundou a Farfarm.co em 2018 e, entre 2019 e 2022, foi responsável pela gestão da equipe de sourcing da VEJA (VERT no Brasil), com foco em algodão agroecológico e borracha nativa. É formado em administração com mestrado em Business for Social Impact na GCNYC.

**Texto também publicado e adaptado para o relatório Fashion Transparency Index 2023.