Com a chancela do SBTi, o mais prestigioso selo de qualidade para compromissos climáticos corporativos, a varejista de moda Lojas Renner se comprometeu a cortar 75% das emissões de gases de efeito estufa de toda a sua cadeia produtiva até 2030.
É uma promessa agressiva e complexa: trata-se do chamado escopo 3. Atingir a meta depende da ação de terceiros, no caso do segmento da moda uma longa cadeia que vai da plantação de algodão às máquinas de costura das confecções.
A Renner tornou-se a sexta empresa brasileira a ter seu projeto de descarbonização aprovado pela iniciativa Science Based Targets, consórcio que avalia os planos à luz da ciência.
Além do trabalho com seus fornecedores, a empresa também assumiu o compromisso de diminuir em 46,2% as emissões de CO2 de suas próprias operações, os escopos 1 e 2, até o fim da década. Em ambos os casos, a linha de base é 2019.
Particularmente no caso do escopo 3, trata-se de uma redução considerável. Quase a totalidade das emissões da companhia é de responsabilidade de seus fornecedores – 95%, para ser preciso. (O escopo 3 também inclui clientes, mas a Renner afirma que as emissões associadas não são significativas.)
A cadeia de produção da moda é extensa. A Renner conta com cerca de 300 fornecedores diretos e cerca de 800 indiretos no Brasil, onde acontece 70% da fabricação. A empresa também contrata serviços de fábricas na China, na Índia e em Bangladesh.
“É um baita desafio”, diz Eduardo Ferlauto, gerente-geral de sustentabilidade da Renner. As iniciativas ligadas às condições de trabalho nas fábricas já vinham sendo alvo de atenção há algum tempo, afirma ele. “Neste novo ciclo, um dos focos principais será o das mudanças climáticas. Isso vai exigir cada vez mais soluções ecossistêmicas.”
Os 75% de redução prometidos no escopo 3 serão contabilizados em intensidade de CO2, ou seja, as emissões geradas na produção de cada camiseta ou par de sapatos. No caso da operação própria, a conta será feita em termos absolutos.
Do campo à costura
A fabricação de roupas e calçados é responsável por cerca 4% das emissões totais de GEE do planeta, ou o equivalente à soma de Alemanha, França e Reino Unido, segundo a consultoria McKinsey.
O fenômeno do fast-fashion (e sua mais recente versão, a ultrafast fashion, simbolizada pela chinesa Shein) agrava o problema: o volume de peças vendidas dobrou nos últimos 20 anos.
Um dos pontos de ataque da Renner serão as matérias-primas. Segundo Ferlauto, a ênfase será no uso de tecidos novos com menor impacto ambiental e também na reciclagem.
O algodão, predominante nas coleções, vai receber atenção especial. Hoje, mais de 99% da fibra natural tem certificação, mas isso não oferece 100% de garantia de baixas emissões no campo. A companhia estuda, por exemplo, a conservação do solo.
Outra arma será o reuso. “O algodão e o poliéster reciclado têm o maior potencial de redução de emissões. São o ‘top 1’ nesse quesito.” Tecidos de peças usadas ou resíduos têxteis são triturados e beneficiados, resultando em novos fios.
A empresa afirma estar trabalhando com fornecedores para desenvolver o processo. Em 2018, a Renner lançou uma coleção experimental feita com sobras de corte de jeans e malha. Duas “lojas circulares” inauguradas no ano passado no Rio de Janeiro têm caixas de coleta de peças usadas.
Ferlauto estima que as matérias-primas respondam por cerca de metade dos cortes de emissões que a empresa pretende alcançar em sua cadeia produtiva. A outra metade é energia.
A Renner atingiu no ano passado a meta de consumir 100% de eletricidade de fontes renováveis em seus escritórios, lojas e centros de distribuição. Agora, esse esforço será replicado com os parceiros.
Como as fábricas não produzem exclusivamente para a Renner, o trabalho fica mais complicado. Não se trata só de monitorar ou cobrar, mas sim de ajudar na transformação de outros negócios.
“Levamos nossos fornecedores de energia para que os parceiros possam entender e fazer a transição [energética]. Temos de compartilhar com nossa cadeia tudo o que aprendemos sobre mudança climática.”
A empresa também criou um programa em conjunto com o Sebrae para chegar ao fornecedor do fornecedor, muitas vezes pequenas oficinas de costura. “Vamos até essa ‘segunda camada’.”
Em comparação com a eletricidade e os tecidos, o transporte rodoviário responde por uma parte relativamente pequena das emissões, mas também há ganhos potenciais importantes, afirma Ferlauto. Eles incluem otimização de rotas e do carregamento dos caminhões, além do incentivo ao uso de combustíveis renováveis.
Uma das tarefas para a empresa – e para qualquer outra companhia que queira cuidar do que acontece além de suas dependências – será criar sistemas para fazer essa mensuração em tantos pontos da jornada produtiva.
Dentro de casa
A Renner fez seu primeiro inventário de gases de efeito-estufa em 2011 e desde então já aprendeu muito, afirma Ferlauto. Em 2018, foram anunciados dois compromissos ligados ao clima – considerando apenas suas próprias operações.
O prazo terminou no ano passado. As emissões de CO2 foram reduzidas em 35,4% em relação ao ano-base de 2017. Foi um corte muito superior aos 20% planejados.
Daqui até 2030, a busca por ganhos dentro de casa deve ficar mais sofisticada. Ferlauto diz que recentemente teve uma conversa com a equipe de manutenção das lojas.
“Não é só a eletricidade ou a iluminação. Discutimos os fluidos refrigerantes usados nos equipamentos de ar-condicionado, para buscar aquele com o menor potencial de gerar aquecimento global.” Ganhos marginais também virão de viagens corporativas e da eficiência geral da operação.
Gota no oceano?
A iniciativa Science Based Target é dona do carimbo de maior prestígio que uma empresa pode obter para seus compromissos climáticos.
Formada por várias organizações sem fins lucrativos, a SBTi alinha as promessas corporativas com a ciência do clima. Depois de validados, os planos recebem uma de duas “notas”.
Para sua estratégia interna (escopos 1 e 2), a Renner recebeu a melhor avaliação: o objetivo tem os elementos necessários para limitar o aquecimento global a 1,5°C até o fim do século, como previsto no Acordo de Paris.
O compromisso de escopo 3 – por natureza mais complexo e sujeito a interdependências – recebeu o selo de “bem abaixo de 2°C”. (Ambas as metas são revistas e atualizadas periodicamente.)
A adesão à SBTi é voluntária, e não há penalidade para as companhias que não cumprirem o que prometeram – a não ser a mancha na reputação.
Dezenas de companhias brasileiras já registraram junto à organização seu “comprometimento” com metas climáticas científicas, mas somente cinco além da Renner receberam a chancela de aprovação: Baluarte Cultura, EDP do Brasil, Klabin, Sabará Participações e Grupo Malwee.
As maiores empresas de moda do mundo – Zara, H&M e Uniqlo – também já tiveram suas metas climáticas aprovadas pela SBTi.