
Vender as usinas termelétricas e investir na geração renovável foi uma decisão que fez despencar as emissões de carbono da companhia Engie Brasil Energia. Mas a redução resultou em um desafio diferente na jornada da empresa rumo ao net zero.
Abandonar os combustíveis fósseis diminuiu o impacto climático causado pela operação direta da empresa. Ao mesmo tempo, cresceu a participação proporcional do chamado escopo 3, que envolve a cadeia de valor.
Praticamente 90% das emissões que restam no inventário da Engie são indiretas. Antes, elas não passavam de 10%. Para avançar em seu compromisso de descarbonização, a Engie precisa dar mais atenção ao que acontece além de seus muros.
Isso significa envolver principalmente fornecedores de placas solares e turbinas eólicas e serviços de construção civil – as emissões de gases de efeito estufa dessas companhias, cerca de 40, entram na conta do escopo 3.
Em valores absolutos, foram 259 mil toneladas emitidas em 2024. O número é apenas uma fração das emissões de 2021, quando a queima de fósseis levou a empresa a fechar o ano em 7,2 milhões de toneladas.
Batizada de Programa de Descarbonização de Fornecedores, a iniciativa oferece diagnósticos e soluções técnicas para ajudar os parceiros a reduzir suas pegadas climáticas. O programa foi premiado pelo Pacto Global da ONU durante a COP29, no Azerbaijão, na categoria “Guardiões Pelo Clima”.
A rota do net zero
Com a emergência climática, a responsabilização das empresas também por suas emissões indiretas ganhou força na discussão sobre transição energética. Os gases são gerados por terceiros, mas a demanda pelo produto ou serviço vem de algum cliente.
Karen Schröder, gerente de meio ambiente da Engie Brasil Energia, afirma que as mudanças no padrão de emissões da companhia são um reflexo também do momento do negócio.
A Engie está em expansão, e o escopo 3 seguirá relevante porque é nele em que está incluída a compra de equipamentos para novos investimentos em parques solares e eólicos. Entre 2021 e 2024, a empresa aumentou a capacidade de geração no Brasil de 8,2 GW para 9,5 GW com novos ativos de geração renovável e pretende investir R$ 11,6 bi até 2027.
“Se há mudança de estratégia, obviamente vão acontecer mudanças e consequências também na contabilização das emissões”, diz.
“Embora nossa cadeia seja uma cadeia para a geração de energia renovável, ela é intensiva em carbono. As placas solares, as turbinas eólicas, a própria infraestrutura de construção, o cimento, o aço”.
Apesar de ser essencial para um mundo com baixas emissões, construir uma placa solar na China, principal produtor mundial, usa uma energia que é até 17 vezes mais suja que a gerada pelo Brasil.
Descarbonizando a cadeia
A companhia priorizou os maiores emissores. Foram 39 empresas procuradas em 2024, entre as mais de 5 mil conectadas a Engie no país. Em 2025, o número subiu para 52, com a entrada de outros interessados.
Para desenhar o programa, os executivos da companhia afirmam que se inspiraram em boas práticas encontradas em setores como o de telefonia, papel e cosméticos.
O primeiro passo é fazer um diagnóstico da eficiência energética das operações e a construção de um inventário de emissões, caso ele ainda não exista. No grupo de empresas selecionadas, a maioria não fazia essa contabilidade.
Ganhos possíveis de eficiência energética costumam ser as primeiras medidas práticas: substituição de fontes e trocas de equipamentos, por exemplo.
Diego Seminara, gerente de suprimentos da Engie Brasil, afirma que algumas desconfianças surgiram principalmente dentro de empresas menores, que suspeitaram dos interesses da companhia. Para driblar isso, a Engie teve uma abordagem “de porta em porta”.
Já companhias maiores, algumas como seus próprios programas de descarbonização, foram mais fáceis de atrair. Entre elas está a Votorantim Cimentos, que tem a metade atingir a neutralidade de carbono neutro até 2050.
Incentivos
Para mobilizar os fornecedores, há uma série de incentivos criados, com retorno financeiro mais ou menos evidente. Por exemplo: a primeira etapa, do inventário de carbono, é feita por uma plataforma desenvolvida pela própria Engie. Ela é gratuita e assim evita custos que ainda não tinham espaço nos orçamentos das empresas, permitindo redução de custos relativos com ganhos de eficiência energética.
Há ainda desconto nos certificados de eletricidade renovável (I-REC, na sigla em inglês), vendidos pela Engie no chamado mercado livre de energia.
E os fornecedores que se adaptarem têm uma potencial vantagem futura. Nas palavras de Schröder, os critérios poderão servir como “desempate” na hora de escolher quem vai ficar com os contratos da empresa.
Mas a executiva não enxerga o inverso: “punições” relacionadas às emissões carbono, como um argumento para rompimentos de contratos. “Até acredito que é uma tendência do mercado evoluir nesse sentido, mas não definimos assim. O que a gente tem como algo claro, agora, é que não deveríamos deixar ninguém para trás”, afirma Schröder.
Como o programa tem pouco mais de um ano, a maioria das 52 empresas ainda está na fase do diagnóstico.
“Utilizar o benefício da plataforma de inventário é fantástico, mas provavelmente daqui a três ou quatro anos ele vai deixar de ser um incentivo. Nós precisamos nos reinventar o tempo inteiro para que eles continuem tendo motivo para estar no programa”, afirma Seminara.
A Cortez Engenharia, uma das fornecedoras da Engie, apontou a ajuda para fazer seu inventário como o motivo para aderir ao programa. No momento, a empresa está estruturando um setor que vai coordenar mudanças técnicas e se reportar à direção.
Porta de saída
Após o plano de ação, a última etapa prevê que as empresas assumam compromissos públicos em reduzir as emissões, que precisa ser certificado por organizações como a SBTi, que avalia as estratégias corporativas net zero. Até lá, em contrapartida, devem disponibilizar dados, participar dos treinamentos, avaliar as alternativas propostas e compartilhar o status das ações.
Em última instância, o objetivo do programa é a redução das emissões indiretas da Engie, mas a empresa também se engajou porque percebeu que precisava conhecer melhor a operação dos fornecedores.
Com os inventários de carbono à mão, os dados da pegada de carbono da Engie deverão ficar mais precisos porque serão fornecidos diretamente. Hoje, 40% das emissões contabilizadas no Escopo 3 ainda dependem de modelos matemáticos que fazem estimativas. Apesar do rigor científico, eles dão alguma margem para erros.
O objetivo da companhia é produzir energia 100% renovável até 2045 em todo o mundo, uma meta alcançada há dois anos no Brasil, país referência na geração renovável.
Com a perspectiva de que os combustíveis fósseis perderão espaço, a Engie Brasil vê o país como um exemplo no uso de políticas para mobilizar o Escopo 3, pelo menos como “case” para ser replicado pela própria companhia. No escritório global, em Paris, o programa brasileiro já chegou às mãos dos executivos.
*Atualizada às 11h08 para ajustar o nome da empresa e corrigir o nome do cargo de Karen Schröder