OPINIÃO

Em Mérida, a força dos investimentos de impacto na AL e a chance de protagonismo do Brasil

A 14ª edição do FLII reforçou a janela de oportunidade (e a urgência) para a região no enfrentamento do colapso ambiental e social

O Fórum Latino-Americano de Investimentos de Impacto em 2024 aconteceu em Mérida, no México
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A pacata e agradável cidade de Mérida (México) foi palco no fim de fevereiro de um evento que demonstrou a robustez que o ecossistema de impacto latino-americano vem ganhando.

O Fórum Latino-Americano de Investimentos de Impacto (FLII), principal evento regional para discutir desafios e oportunidades para o avanço da pauta, deixou clara a evolução contínua, tanto em volume de capital e negócios investidos, quanto na pluralidade de instituições investidoras, fundos de investimento, tipos de ativos, iniciativas junto a entidades públicas e parcerias com big corps.

Otimismo confirmado por pesquisas do GIIN (Global Impact Investing Network), que demonstram que entre o período de 2017-2022 os investimentos para estratégias de impacto na América Latina & Caribe aumentaram 21% (CARG), o maior crescimento entre os mercados emergentes, sendo a Ásia Oriental a única outra área que registrou um crescimento semelhante durante o mesmo período. 

Os dados apontam que seguiremos em curva ascendente, tendo 48% dos investidores com planos de incrementar o volume de capital destinado à região ao longo dos próximos 5 anos. 

Temos nos destacado também entre as escolhas geográficas dos investidores, com atualmente 300 fundos dedicados exclusivamente a investir na América Latina & Caribe, atrás apenas da África Subsariana (com 460), de acordo com pesquisa da consultoria Tameo.

Grandes problemas e potencial de soluções 

Esta edição destacou a ‘conexão’ como alavanca para os investimentos de impacto, desdobrando a agenda entre três trilhas: conexões humanas, conexões com a natureza e conexões com tecnologias inovadoras. 

A vocação e a capacidade da região em impulsionar a transição para uma economia de desenvolvimento sustentável e inclusivo deram o tom aos 3 dias do encontro.

Muitas das falas reforçaram a insuficiência do volume de capital diante dos desafios da região, reconhecendo a extrema desigualdade socioeconômica, a elevada pobreza, as incertezas nos cenários políticos, a precariedade de acessos básicos e o aumento da vulnerabilidade da população pelos danos da mudança climática.

 Tiveram destaque na agenda: investimentos em transição energética, iniciativas de inclusão de gênero, soluções baseadas na natureza, adoção de IA para o bem e alocação de dinheiro europeu na Amazônia.  

Presença brasileira

O Brasil, pela primeira vez, esteve presente no evento com uma comitiva, fomentada pela Aliança pelo Impacto, composta por atores de diferentes segmentos do ecossistema nacional – e fui parte dela.

Com o país na presidência do G20 e sediando a COP 30, no ano que vem, temos a oportunidade inédita de ser efetivamente uma liderança na agenda, não só pelo holofote que esses grandes eventos trazem, mas também pela maturidade alcançada na economia de impacto local.

A comitiva destacou a infraestrutura brasileira, com políticas públicas como a criação da Enimpacto (Estratégia Nacional de Economia de Impacto), que estabeleceu uma meta de R$180 milhões de investimento público nos próximos dez anos, e o pionerismo da CVM (Comissão de Valores Mobiliários) na estruturação do Laboratório de Inovação Financeira (LAB), com interação multissetorial para a promoção de finanças sustentáveis e também na adoção de relatório de informações financeiras relacionadas à sustentabilidade com base nos padrões internacionais do ISSB (International Sustainability Standards Board).

Na contramão dos demais países com mercados emergentes, os investimentos de impacto realizados no Brasil são feitos majoritariamente por investidores brasileiros e, portanto, o avanço do ecossistema nacional passa também pela capacidade de atrair capital estrangeiro. 

Nesse sentido, temos muito o que aprender com os países vizinhos sobre atração de capital internacional e podemos contribuir com a nossa experiência sobre mobilização de capital interno, como family offices, corporates venture capital e recursos públicos.

Outro ponto de destaque foi o interesse explícito na agenda em soluções voltadas para a regeneração da biodiversidade e transição energética, que convida o país a alavancar a liderança já existente em bioeconomia e fomentar soluções para conter o desmatamento e promover a regeneração das áreas florestais.

Discussões sobre mecanismos financeiros como o blended finance reforçaram o mote do evento que convocou conexão e união entre atores. Esse modelo de instrumento é reconhecido por conectar diferentes tipos de bolsos e apetites de risco e pode promover soluções ambientais integradas com as demandas sociais, a geração de renda para a população residente, como os povos das florestas, e também o desenvolvimento de um ecossistema com empreendedorismo mais inclusivo.

Lacunas de diversidade

Como painelista da trilha de Conexões Humanas, me chamou a atenção o fato de, enfim,  os painéis tratarem sobre inclusão e diversidade, algo não havia sido visto em outras edições. 

Mas ainda deixou a desejar o fato de a diversidade ter sido discutida em diálogos apartados, quando poderia ter sido tratada de forma transversal em paineis sobre outros temas. Além disso, o foco ainda recai exclusivamente sobre a questão de gênero, quando é preciso ter uma visão muito mais ampla.

Nossa realidade no Brasil, assim como a dos demais países do sul global, aponta que o nó das desigualdades sociais está na intersecção de raça-gênero-classe. Pessoas negras e povos originários (público de atenção de países latinos, como o próprio México) são a parte majoritária dos que são atravessados pela ausência de acessos básicos e pelos danos das mudanças climáticas. 

É crucial que esses grupos sejam sujeitos nos negócios e investimentos de impacto, não apenas objetos de estudos/produtos/serviços.

A baixa presença numérica de pessoas não-brancas no FLII também reflete a disparidade que ocorre no ecossistema como um todo, demonstrada em pesquisas e dados de séries históricas sobre o perfil demográfico de quem investe e de quem recebe investimentos.

Isso, por si só, já justifica a urgência de fomentar diversidade interseccional nas teses de investimento. Inovar, por essência, demanda romper com a homogeneidade e agregar novos ângulos. A eficiência das soluções investidas passa primordialmente pela inclusão de pessoas diversas na construção delas. Não tem floresta de pé sem a sabedoria dos povos que lá habitam e isso também vale para as periferias e os rincões latinos.

O Brasil tem musculatura, bastão na mão e atributos muito desejáveis para fincar uma liderança não só local, como global. Resta saber se vamos decolar ou seguir patinando na pista.

* Jéssica Silva é investidora de impacto, especialista em gestão e mensuração de impacto,  membra do Comitê ESG do Grupo Fleury, conselheira do Pacto da Promoção da Equidade Racial e cofundadora da BlackWin (Black Women Investment Network).