Está relativamente claro que esperar o primeiro e terceiro setores (governo e ONGs, respectivamente) resolverem sozinhos os problemas socioambientais vividos até hoje pela humanidade não vai ser suficiente para evitar o colapso completo.
Para além do trabalho realizado por esses dois setores, que em muitos casos é muito bem feito, precisamos testar outros caminhos que complementem essas atuações já tradicionais e nos façam caminhar mais rapidamente em direção às transformações sociais e ambientais que o mundo precisa.
A questão que coloco aqui para reflexão é a morosidade, na minha visão excessiva, envolvida nos testes e desconstruções necessários ao surgimento de novas possibilidades de atuação. Cada vez que tentamos inovar desconstruindo velhas formas de organização e trazendo caminhos de fato inovadores, leva-se muito tempo para o que eu apelido aqui de “digestão ecossistêmica”.
O conceito de negócios de impacto, por exemplo, é apresentado como “setor 2.5” por tratar de modelos de negócios estruturados como segundo setor (mercado privado), mas que nascem com o mesmo objetivo que as organizações do terceiro setor.
Essa visão revela uma desconstrução em relação à lógica de organização em 1º, 2º e 3º setores, mas que levou muitos anos pra chegar ao mainstream e ser aceita pelo mercado. Mais precisamente 40 anos, desde que Muhammad Yunus idealizou o primeiro negócio social, o Grameen Bank, por volta de 1980.
Quebrar padrões leva muito tempo e temos que contar com a resiliência de visionários como o Yunus. Mas será que, diante da nossa realidade social e ambiental global, temos todo esse tempo a perder?
Bolso esquerdo ou bolso direito?
Anos atrás, quando tentávamos pensar em novos caminhos mais escaláveis para inovar trazendo benefícios sociais e ambientais relevantes, tivemos algumas ideias relacionadas a aproximarmos o mundo do investimento e o da filantropia em prol do impacto.
Pretendíamos atrair o capital filantrópico, acostumado a ser alocado em projetos sociais e ambientais “a fundo perdido” (mas que de “perdido” não tem absolutamente nada) para financiar o surgimento e validação de novos negócios de impacto.
Sendo assim, ao identificarmos boas ideias e projetos que de fato trazem inovações que contribuem para a resolução de problemas sociais ou ambientais relevantes, estaríamos reunindo um ótimo pipeline para aportes de capital filantrópico.
Ao tentar implementar iniciativas nessa linha enfrentamos uma série de resistências por parte de investidores e filantropos, pois cada um desses setores já estava muito bem estruturado com suas regras e mecanismos próprios de funcionamento.
Para os investidores, que se debruçam em diversificar seus investimentos em setores, indústrias, tipos de produtos e grau de risco corrido, é quase impensável investir em negócios em fase inicial (estando atrelado a impacto ou não) sem a perspectiva de alto retorno financeiro.
Investir em negócios nascentes é um dos tipos de investimento mais arriscados da economia, já que o investidor está disposto a de fato perder todo capital investido. Só que para isso fazer sentido, se o investimento der certo, tem que ser capaz de gerar um retorno acima da média.
Ou seja, bater na porta de investidores para financiarem o desenvolvimento de negócios de impacto em fase inicial sem ter a perspectiva de geração de retorno acima da média não só não fez sentido como representava um “erro conceitual” para quem entende de investimento.
Ao mesmo tempo, para o mesmo investidor que também destina parte de seu recurso para filantropia, e ao fazer isso não espera nenhum retorno financeiro de largada, também é difícil conceber que seu capital filantrópico está sendo alocado em negócios que geram lucro — mesmo que tais negócios tenham um retorno em impacto social e/ou ambiental igualmente relevante ou até maior do que aquele gerado pelo terceiro setor tradicional.
Ou seja, para o mesmo investidor não fazia sentido investir nem se o capital saísse do “bolso direito” do investimento, nem pelo “bolso esquerdo” da filantropia.
Quebrar esse paradigma, de que os recursos da filantropia podem fazer parte de um novo portfólio de investimentos, levou e tem levado muito tempo.
Venture Philanthropy
Nossa grande luta no Quintessa (e a de muitos fundos de investimento de impacto e outros atores do ecossistema) é justamente mostrar que investimento e impacto socioambiental podem e devem andar juntos.
A velha forma de pensar “aqui eu invisto e penso apenas em retorno financeiro e não importa se esse investimento gera uma externalidade social ou ambiental negativa” e “ali eu destino para causas sociais e ambientais positivas, sem pensar no potencial de escalabilidade, perenidade ou poder de multiplicação desse capital” não se sustenta mais no longo prazo.
Há um tempo, depois de muita conversa, fizemos uma tentativa tímida de unir o capital filantrópico a oportunidades de investimento em negócios de impacto em estágio iniciais e congelamos a ideia por uns anos, pois a resistência na compreensão e adesão à ideia era alta.
O tempo passou e novas iniciativas surgiram nessa linha, com diferentes abordagens. ESG e sustentabilidade começaram a ser relevantes na agenda das empresas e dos executivos e os investimentos sustentáveis/responsáveis começaram a aparecer na lista de produtos de casas de investimento tradicionais, mesmo que de forma inicial.
Após alguns casos internacionais de sucesso e muito estudo de gente engajada sobre o assunto, vimos nossa ideia anterior ser cunhada como um novo conceito, o de “Venture Philanthropy”, que é uma nova modalidade de investimento entre os tons de cinza que aparecem entre o investimento tradicional e a filantropia tradicional.
Foi explicada pela organização FORImpact, em 2020, no seu Guia para Famílias e Family Offices sobre Investimentos em Impacto Socioambiental: “Venture philanthropy coloca o negócio de impacto socioambiental no centro, promovendo o investimento com foco principal no impacto (impact first), mediante a oferta de capitais mais pacientes, suportando maiores graus de risco e retornos possivelmente inferiores aos benchmarks de mercado.”
Acelerar a inovação
Depois de 12 anos de Quintessa, vejo o mesmo processo acontecer com várias das inovações trazidas pelos empreendedores acelerados por nós, que na época não tiveram adesão de mercado e hoje são muito bem aceitos. É o caso de alguns negócios no setor de resíduos, por exemplo, desde a coleta seletiva até o que fazer com o produto pós consumo.
Isso não é nada novo para qualquer um que já tentou inovar, seja através de um negócio de impacto, seja através de qualquer produto ou projeto não necessariamente ligado a impacto positivo. Nem sempre o mercado está pronto para a inovação que o olhar visionário de um empreendedor já consegue enxergar de antemão.
A inovação de grandes empresas atrelada à agenda do impacto positivo também é um tema que está sendo digerido aos poucos pelas empresas nos últimos anos.
Os negócios acelerados pelo Quintessa sempre enxergaram as grandes empresas como clientes e parceiros muito importantes para sua escalabilidade e consequente expansão de impacto positivo. Já os executivos estão se abrindo para essa realidade pouco a pouco ao perceberem que os negócios de impacto podem de fato contribuir para os desafios enfrentados por eles na operação das empresas que fazem parte.
Quantas boas ideias não morreram na praia por não suportarem esse tempo de maturação e ganho de massa crítica necessários para que empresas, institutos, fundações, investidores e outros começassem a se abrir a novas formas do pensar e do fazer?
Quantas vezes o ângulo do “ou”, ao invés do “e”, limitou nossa capacidade de conceber novas respostas para velhos desafios?
A reflexão proposta aqui é: qual o nosso papel na aceleração dessa tal digestão ecossistêmica?
Independentemente de onde trabalhamos, de onde atuamos ou contribuímos, podemos nos convidar a estarmos em um lugar mais aberto para essas inovações socioambientais.
Essa é uma das contribuições que podemos fazer para que essas agendas evoluam mais rápido e possamos descobrir novos caminhos, formas de organização, formas de investimento ou empreendimentos que de fato favoreçam uma evolução significativa em prol de uma realidade mais generosa e justa para todos, inclusive para o nosso planeta, compartilhado por todos nós.
* Formada em Administração Pública pela EAESP- FGV, Gabriela Bonotti é sócia do Quintessa. Iniciou sua carreira no Santander, na área de desenvolvimento sustentável. Ingressou em 2012 no Quintessa como gestora de acelerações e hoje é responsável pela coordenação de todos os programas de aceleração, dos programas em parceria com grandes empresas e captações de investimento para os acelerados, além dos assuntos estratégicos da organização.