Um brechó online que nasceu como blog, deve faturar cerca de R$ 60 milhões e ainda não dá lucro está prestes a estrear na B3 valendo mais de R$ 2 bilhões — pouco mais de meia C&A ou pouco menos que a metade de uma Arezzo.
Sinal inequívoco do valor da moda circular ou bolha de mercado? Nem um, nem outro.
No IPO do Enjoei, o que os investidores estão mesmo buscando é algo que ninguém conseguiu dominar em escala: um marketplace bem-sucedido e com consumidores engajados para artigos de moda e vestuário, um mercado enorme e ainda pouco penetrado no online quando comparado com outras categorias.
“Tem muito marketplace mais generalista, que vende eletrônico, brinquedo, artigo para casa e até artigos de mercearia”, diz o gestor de uma asset do Leblon que pretende entrar na oferta. “Mas a moda é um bicho completamente diferente. Nem a Amazon nos Estados Unidos tem relevância em moda.”
Talvez por isso, ao contrário de empresas com narrativas menos óbvias do ponto de vista de sustentabilidade, o Enjoei não está batendo tanto na tecla ESG durante as reuniões com investidores para o IPO. A tese do crescimento do reuso aparece, mas de forma secundária.
Mais que uma mera plataforma, o que o Enjoei construiu ao longo de uma década viabilizando a compra e a venda roupas usadas foi uma plataforma esteticamente agradável, com linguagem própria e que se assemelha a uma rede social.
Com isso, conseguiu entregar duas palavrinhas mágicas no mundo do e-commerce: engajamento e recorrência.
De acordo com informações do prospecto da oferta, cerca de 35% do valor transacionado na plataforma nos 12 meses encerrados em junho foram gerados por clientes que já fizeram mais de 30 compras na plataforma. No mesmo período, cerca de 70% das transações foram feitas por usuários com mais de duas compras no mesmo mês.
“Se eles conseguirem escalar mantendo esse mesmo nível de execução e retenção, é um baita negócio”, diz outro gestor.
É essa tese que fez a oferta ser bastante demandada desde que foi para rua, mesmo num mercado já não tão amigável quanto há alguns meses — e num valuation considerado um tanto quanto esticado, especialmente para um uma startup, ainda que de estágio avançado, que ainda tem muito a provar em termos de execução.
Segundo apurou o Reset, a oferta já tem demanda três vezes superior à oferta, excluindo da conta a ancoragem de JGP, SPX, Opportunity e mais dois fundos domésticos que garantiram, juntos, R$ 450 milhões na largada. A dois dias do fechamento do livro, a expectativa é que o papel saia no piso da faixa indicativa, que vai de R$ 10,25 a R$ 13,75.
Ao todo, o Enjoei pretende levantar cerca de R$ 1,15 bilhão, dos quais R$ 550 milhões vão para o caixa da empresa e R$ 600 milhões referem-se à venda pelos atuais acionistas.
Além dos fundadores, que têm 28% da empresa, são acionistas a gestora de venture capital brasileira Monashees (15,5%), os americanos da Bessemer (18%), a carioca Dynamo (8%) e a Rede Globo (12%), que levou uma participação na empresa em troca de espaço publicitário na grade. Todos eles vão vender parte de suas ações, mas ainda continuarão na base acionária.
A oferta tem como coordenador líder o BTG Pactual e conta ainda com Bradesco BBI, J.P. Morgan, XP Investimentos e UBS.
Um passeio (virtual) no shopping
O Enjoei foi fundado há 11 anos pela publicitária Ana Luiza McLaren, então com 23 anos, como um blog para vender suas roupas usadas. Com fotos esteticamente impecáveis e descrições detalhadas e divertidas, ele viralizou e três anos depois se consolidou como negócio.
Ela e o marido Tiê Lima deixaram seus empregos no Google e na Editora Abril e começaram a se dedicar ao negócio, que logo recebeu um aporte da Monashees.
A estética e a linguagem construíram uma comunidade coesa, em que os usuários podem dar likes nas peças, são avisados todas as vezes que têm um desconto e podem negociar valores entre si. Outra hype veio da criação de lojinhas de celebridades e influenciadores digitais, que ajudaram a trazer tráfego.
“Os fundadores costumam dizer que a plataforma é pensada para o usuário navegar como se estivesse passeando no shopping”, diz um gestor que vem acompanhando a companhia.
Em outras palavras: o Enjoei gosta de se vender como uma plataforma de browsing, ou ‘navegação’, em que o usuário passeia pela tela, mais do que uma plataforma de busca, onde ele vai procurar um produto específico. Ao todo, foram mais de 23 milhões de visitas na plataforma nos últimos 12 meses.
A questão de sustentabilidade, com expansão da moda circular e revenda de peças, é um dos ventos de cauda para o negócio. “Sem dúvida é um mercado que vai crescer acima do mercado de moda como um todo”, aponta o analista de uma grande gestora. “Mas, se eles forem para roupas novas, o mercado endereçável é imenso.”
A própria empresa não descarta a possibilidade de entrar no mercado de novos, muito provavelmente como uma plataforma de desconto para as grandes marcas.
“Através da nossa listagem diferenciada, permitimos que as marcas posicionem seus produtos entre os itens enviados pelos usuários, sem prejudicar a experiência dos compradores e vendedores, uma vez que nosso algoritmo prioriza produtos com mais engajamento e interesse de cada usuário”, diz a empresa no prospecto.
Não é um caminho muito distinto do traçado por plataformas com o Mercado Livre, que começou com a venda de consumidor para consumidor (C2C) e hoje também é forte na venda de produtos novos, como eletrônicos.
Circulando
Há ainda um filão imenso para se explorar na questão no mercado de itens usados de moda.
Não há dados para o Brasil, mas, segundo a ThredUP, uma startup parecida com o Enjoei que pretende fazer seu IPO nos Estados Unidos, cerca 64% dos 32 bilhões de peças que são produzidas no mercado americano têm como destino… o lixo. É recurso natural — e dinheiro — indo pro ralo.
A maior parte do dinheiro captado pelo Enjoei será usada com marketing, para atrair mais clientes para a plataforma, mostrando que é possível vender o que está no guarda-roupa e economizar garimpando no armário alheio do conforto do sofá.
A verba será destinada ainda a otimizar a logística, hoje muito dependente dos Correios, e amplamente subsidiada para garantir que o custo com frete não acabe por matar as vendas.
Há ainda grandes vertentes para explorar. Um deles é o chamado ‘trade-in’, ou o serviço de revenda para as marcas, o que ajuda a dar um destino mais sustentável para empresas de vestuário preocupadas com o impacto ambiental, e de olho no marketing mais sustentável para os consumidores antenados das novas gerações.
Um piloto já está em curso com a Farm, do grupo Soma. Os clientes podem levar produtos usados da marca para as lojas físicas e ganham em troca desconto na compra de peças novas. As peças são vendidas pelo Enjoei, que repassa para a Farm o valor da venda descontada a comissão. Para as marcas é um ganha-ganha: gera fluxo para as lojas e cria um círculo virtuoso no ecossistema da indústria da moda.
Nos Estados Unidos, plataformas de revenda de roupas como a ThreadUp fazem esse trabalho de diversas formas, para marcas que variam da Reebok até o Walmart.
O Enjoei quer ainda expandir o EnjuPro, hoje disponível apenas na cidade de São Paulo.
Na operação tradicional é o cliente quem tira fotos da roupa ou acessório, sobe as imagens para o site, determina o preço, faz a negociação e leva o produto ao Correio — uma trabalheira para quem não tem tempo ou simplesmente não está muito afim. No Pro, o Enjoei faz o serviço completo, da coleta das peças à fotografia e envio, e para isso cobra uma comissão de 50%, contra 20% no serviço arroz-com-feijão.
Sem pechincha
Se o vento está soprando a favor da empresa, há uma grande dúvida no mercado quanto à sua capacidade de execução, especialmente por se tratar de uma startup, que não costuma acessar o mercado de ações neste grau de maturidade.
“A empresa nunca viu tanto dinheiro no caixa. O crescimento para 2021, 2022 está contratado, a questão é o que acontece depois”, diz o analista de uma grande asset.
Diferentemente de startups que têm crescimento exponencial logo de cara, o Enjoei diz aos investidores que optou por crescer aos poucos, para não prejudicar a experiência do usuário. O fato é que cresceu pouco nos últimos anos, até que o volume de vendas começou a explodir em 2020.
“Tem uma dificuldade grande de saber o que é vento nas costas, o que estão fazendo certo e o que é efeito pandemia”, pontua um analista. “Um aspecto que me preocupa é que, para além do time de fundadores, que é muito competente, o turnover (giro de funcionários) é alto.”
Nos últimos 12 meses findos em julho, a plataforma vendeu R$ 373 milhões em GMV, o gross merchadinsing value, que diz respeito ao valor transacionado dos produtos. O GMV quase dobrou do segundo trimestre de 2019 para o mesmo período de 2020, chegando a R$ 112,6 milhões.
Nas contas dos analistas, o múltiplo EV/GMV implícito na oferta, que divide o valor da empresa pelo valor transacionado, é de 1,7 vez. É bem abaixo das cerca de 2 a 3 vezes a que são negociados players como Mercado Livre e Magazine Luiza.
Dá para ver a comparação de duas formas. Por um lado, o take rate — a comissão da venda que efetivamente se converte em receita para os marketplaces — do Enjoei é muito maior, de 27% em média, contra 10% a 12% dos players mais generalistas. Por outro, os riscos são muito maiores.
“É quase como uma opcionalidade. Tem um potencial imenso, mas com bastante risco. A gente resolve isso dosando o tamanho da posição no nosso portfólio”, diz um gestor mais animado com a tese.
A oferta também deve provocar outros players mais consolidados, pontua um outro profissional.
“O sucesso do IPO do Enjoei somado à digitalização maciça que aconteceu na pandemia vai mostrar para as grandes do varejo que elas têm que fazer diferente na inovação da operação digital”, diz. “E vai impulsionar a questão da importância da circularidade, cuja mensagem vai chegar mais longe com esse caminhão de dinheiro de marketing.”
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