Kimbi e A Magia na Floresta, publicado em 2022 pela Edições Barbatana, é um livro capaz de abraçar muitos mundos com seus dois contos interligados e suas ilustrações impactantes, de Fernando Carlos e Kel, respectivamente.
O primeiro toque desse abraço é ancestral. Em pleno século XXI, dois autores negros, um nascido em Luanda, Angola, e outro em São Paulo, Brasil, reúnem sua arte e suas histórias em um objeto bem maior do que parece.
A história nos conta que o Brasil recebeu de Angola cerca de três milhões de pessoas escravizadas entre 1530 e 1850, quando o tráfico foi proibido no Atlântico. Na Angola colonizada, a escravidão terminou, aos olhos da lei, apenas em 1878, dez anos antes da assinatura da Lei Áurea, do outro lado do oceano.
Na prática, ela foi muito além disso, nos dois países, deixando marcas profundas e práticas que ainda penamos para eliminar. Separou famílias, dizimou culturas, hierarquizou a humanidade com base na cor da pele e destruiu muitas vidas.
Nesse livro, o enlace entre tantas histórias cruzadas por gerações vai além da soma dos talentos dos autores – de texto e de imagem. Ele se dá também por meio da língua portuguesa e graças a ela, imposta pela colonização a que ambos os países foram submetidos e que hoje nos ata a tanta gente.
Foi essa herança, o nosso idioma, e tudo o que ele é capaz de reunir que tornou essa obra e os encontros contidos nela possíveis.
Kimbi
No primeiro conto, a Angola urbana, contemporânea, descobre a Angola rural, parada no tempo das modernidades, mas acelerada igual vida de cidade grande quando se fala de sabedoria. Ou foi o contrário?
Dois irmãos ganham de presente dos pais uma viagem a Nzoji, aldeia do interior onde nasceu o pai e ainda mora o avô. Cruzam a estrada cheios de expectativa. Do lado de lá, também há estranhamento e um menino órfão, Kimbi.
“Somos árvores diferentes, mas fazemos parte da mesma Floresta”, explica o velho. Muitas semelhanças, poucas coincidências com os registros da nossa colonização.
Os três garotos tornam-se grandes amigos e apresentam seus mundos, uns aos outros, ainda que não tenham um idioma comum. Terão que aprender a lidar com o longe e com a saudade, palavra tão portuguesa e cheia de sentido para qualquer ser humano. Vão encontrar seus próprios caminhos para amenizá-la.
O conto apresenta ao leitor nomes de plantas, animais e objetos que simbolizam a região e que voltam a aparecer na história seguinte, onde, em uma floresta mais literal, seus habitantes terão de superar diferenças e construir algo juntos, sem deixar que ímpetos de superioridade floresçam.
A Magia na Floresta
O conto “A Magia na Floresta” é descrito pelos editores como uma mistura de “Revolução dos Bichos”, o clássico de George Orwell publicado em 1945, que faz uma crítica à ditadura stalinista, com a história da Arca de Noé. Claramente é muito mais do que isso.
Após uma tempestade devastadora (você pode associá-la à tempestade contemporânea de sua preferência) um grupo de animais decide parar de se lamentar e se organiza para voltar a viver – com esperança! Como bons alunos de ESG na prática, fazem de suas diferenças um diferencial e adotam a solidariedade e o amor como valores básicos.
Em um texto bem-humorado, com pequenas ironias e cutucões em crenças pré-estabelecidas, o autor propõe um suspiro em meio ao caos, sem deixar de lado a fantasia, resgatando em pequenos e grandes leitores a capacidade de ver além do concreto.
Sol, lua, nuvens e Terra são personagens e têm papéis definidos na reconstrução dessa floresta. Uma planta ganha alma e fala a mesma língua dos animais. Problemas inerentes ao processo aparecem, inevitáveis, e os animais são criativos nas soluções.
Surgem ideias de como conviver com o diferente sem que isso exija situações de violência, como, por exemplo, quando o leão precisa dividir uma cabana com o coelho.
A nova vida dessa sociedade espelha, de certa forma, necessidades do mundo de hoje. São nomeados, conforme seus talentos e experiência, os responsáveis pela saúde, cultura e educação.
Até mesmo uma ONG de apoio às fêmeas que enviuvaram na tempestade é formada. O conforto, por meio da fé, também ganha um mensageiro. E o final é bonito.
O livro todo é um convite para vencer distâncias: entre espécies, entre elementos aparentemente opostos, entre desavenças históricas (muitas delas intrínsecas à natureza de cada um) e o que mais o leitor conseguir imaginar.
Uma metáfora criativa, bem executada, sem eloquência nem uma única moral possível. Uma verdadeira tempestade de ideias para conversas importantes com leitores sujeitos a tantas intempéries na vida real.
O texto é robusto e o vocabulário, rico, ao misturar português de três países, com termos típicos de Angola.
Para leitores autônomos, talvez a aventura seja mais agradável àqueles com certa experiência, a partir de 9 anos. Nada impede que os ousados mergulhem sozinhos e que os menorzinhos venham bem acompanhados.
Como o livro foi feito
A Barbatana conta que recebeu os textos por email diretamente do jovem escritor angolano Fernando Adão Carlos, que havia conhecido livros da editora ali mesmo, na África.
Enquanto a ideia se transformava em projeto, o autor venceu um concurso literário em Portugal, promovido pelo Instituto Camões, órgão de política externa do governo português, que promove sua língua e sua cultura em âmbito internacional, em parceria com seus representantes locais homônimos nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Palop).
Destinos voltam a se cruzar quando o designer e artista gráfico paulistano Kel, que já havia ilustrado um livro da Barbatana, é convidado a embarcar nessa viagem que reúne tantos além-mares.
Ele cria um universo de imagens e cores cheio de movimento e de sons. Sim, se você olhar bem, vai ouvir o farfalhar de asas, risos de crianças, galopes, buzinas, motores e cantos. Ilustrações que contam também boa parte da história, desde a capa.