OPINIÃO: Onda de layoffs expõe retrocesso em diversidade e inclusão

Demissões atingem de maneira desproporcional mulheres, pessoas negras, LGBTQIA+, PcD, +60. Não se trata de uma infeliz coincidência, escreve Jéssica Rios

OPINIÃO: Onda de layoffs expõe retrocesso em diversidade e inclusão
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Em muitos dos grupos dos quais participo, estou cercada de mulheres e pessoas negras e uma constatação tomou minha atenção (e sono) nas últimas semanas. 

Começou com uma mensagem isolada de uma pessoa conhecida relatando sua demissão, depois mais uma e mais uma e mais uma. Dias atrás almocei com 20 mulheres negras executivas, empreendedoras e consultoras de diversidade e inclusão e entre os temas que rondavam a mesa estava lá a preocupação compartilhada de que as políticas e ações de equidade estariam minguando.

Um artigo da NBC News mostra que no final de 2022 a extinção de cargos de diversidade, equidade e inclusão (DEI) nos Estados Unidos foi de 33%, em comparação com 21% nos demais cargos.

Avançando no relatório da Revelio Labs, que embasa o artigo, notamos que os cargos focados em DEI já vinham em uma taxa de rotatividade de quase 40%, em comparação com uma taxa de 24% para os demais cargos.  Ao interpretar esses dados juntos, o artigo da NBC News aponta que, para alguns especialistas, o fluxo de contrações em DEI em 2020 foi um movimento falso e que os cargos foram sistematicamente enfraquecidos a ponto de não pararem mais de pé.

O desmonte em diversidade, equidade e inclusão faz parte de um cenário mais amplo de demissões.

Desde janeiro as manchetes e timelines já reportavam que as ondas de cortes de postos de trabalho eram “o novo normal”, que têm como principal justificativa a necessidade de reduzir custos com a diminuição do crescimento econômico global. 

Mas demissões atingindo de maneira desproporcional mulheres, pessoas negras, LGBTQIA+, PcD, +60  estão sendo consideradas uma infeliz coincidência, sem abordar (ou ao menos refletir sobre) os efeitos e suas externalidades.

A empresa 365 Data Science analisou os números da onda de demissões no setor de tecnologia e constatou que a maioria das pessoas demitidas (56%) são mulheres. Como recordado pela Carolina Cavenaghi em artigo para a Exame, no ecossistema de tecnologia a presença feminina é minoria histórica, portanto a escolha dos cortes exacerbará a lacuna. 

Esses cortes representam um retrocesso nas políticas de contratação adotadas desde a pandemia e que pautaram diversidade e inclusão como uma alternativa para uma nova consciência corporativa.

Black Lives Matter?

Numa volta ao passado recente, precisamos relembrar a espinha dorsal que lançou o boom das áreas de DEI nas corporações.

No início da pandemia da covid-19, a consternação do caos ganhou em maio de 2020 mais um capítulo de dor. Era a barbárie à luz do dia escancarando a desvalorização explícita das vidas de pessoas negras, diante da brutalidade policial nos EUA. A perplexidade e indignação com a morte de  George Floyd levou às ruas globais a aclamação por justiça. Das ruas às paredes, das camisetas às telas virtuais – em todos os espaços encontrávamos a frase imperativa: Black Lives Matter. 

Traduzida em inúmeros idiomas, vimos no Brasil se replicar por todos os lados a versão “vidas negras importam”. Uma afirmação que escancarou a necessidade de tratar, ou ao menos pautar, a desgraça do racismo que persegue e executa corpos negros dia a dia.

Teve quem de forma espantosa tenha “descoberto” a violência contra pessoas negras vendo o episódio americano, mas a realidade nua e crua foi escancarada também no Brasil.

Na véspera do dia da Consciência Negra de 2020, Beto Freitas foi morto em um ato de violência dentro das dependências de uma unidade do Carrefour, cometido por um funcionário terceirizado do hipermercado. Elementos trágicos mais do que suficientes para levar à avalanche de argumentações sobre a responsabilidade das corporações em enfrentar mazelas sociais.

Com o debate aquecido,  a lente foi ampliada e a sociedade brasileira passou a enxergar a ausência de mulheres e, sobretudo, de pessoas negras nas fotografias corporativas. E logo os demais grupos historicamente vulnerabilizados foram acrescidos ao escopo das reivindicações de inclusão.

As pesquisas que exploraram os benefícios da diversidade foram replicadas em incontáveis matérias, sites corporativos, posts, apresentações, cursos e falas. E as cartas e intenções das empresas e dos investidores em abordar diversidade viraram notícia. Camadas e áreas com profissionais especializados em DEI ganharam espaço. E o tema da equidade foi enfim pauta das abordagens ESG.

Desmonte

Mas, passados apenas três anos, nos deparamos com a fraca envergadura dos movimentos tomados. Assim como a própria agenda e estratégia ESG padecem na superfície das tratativas, as práticas de DEI navegaram no raso. 

A fragilidade dos tais avanços em equidade só demonstra agora a leviandade sobre a qual foram pavimentados.

Agora, mais do que nunca, precisamos exclamar e elevar os discursos para as ações. Ou vamos atestar que todo o debate público sobre a inequívoca importância da diversidade, equidade e inclusão foi mera encenação? 

Não temos nem margem de tempo que permita esquecer os compromissos anunciados com a agenda 2030 da ONU, bem como os pactos para fomento da equidade assinados em público. 

A gravidade social das desigualdades, no cerne da urgência climática, já se materializa em perdas catastróficas.

A esfera corporativa é um dos principais agentes de tais problemáticas – e é exatamente por isso que precisa ser também agente de transformação e soluções.

O Brasil é um país plural. Seguir negligenciando a nossa inerente diversidade, sobretudo em momentos de crise econômica, é escolher uma estratégia desatualizada em relação ao espírito do tempo. 

Não há como construir rotas que nos tirem do abismo socioambiental em que vivemos sem romper com os modelos que perpetuam a homogeneidade. Não há inovação escolhendo os velhos padrões.

Para encerrar esse artigo (para mim, o desabafo de um cansaço), compartilho as inquietações que pairam minuto a minuto na minha cabeça diante das justificativas de que o mercado está em crise e que os orçamentos precisam ser priorizados:

  • Que tipo de resultado é considerado na hora de priorizar o que fica e o que sai nas linhas do balanço corporativo? 
  • O que é definido como input de performance? 
  • Qual lente sustenta as decisões? 
  • Há integração dos elementos de impacto com o financeiro na tomada de decisão? 
  • Os compromissos para 2030 fizeram parte dos planejamentos estratégicos de 2023? 
  • Que planejamentos são esses? 
  • Começam para valer quando? 
  • Quem paga a conta? 

* Jéssica Silva Rios é cofundadora da BlackWin (Black Women Investment Network), integrante do Comitê ESG do Grupo Fleury, conselheira do Pacto da Promoção da Equidade Racial, especialista em gestão e mensuração de impacto e mentora voluntária de pessoas empreendedoras oriundos de grupos sub representados, como mulheres e pessoas negras, que buscam expandir seus negócios.