COLUNA - ALEXANDRE TEIXEIRA

O Nobel de Economia e a desigualdade dentro de casa

Claudia Goldin, vencedora do prêmio de 2023, diz que a equidade salarial começa pelo casal; até lá, defenda a flexibilidade no trabalho

O Nobel de Economia e a desigualdade dentro de casa
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Profissionais mulheres, em geral, lideranças femininas, em particular, provavelmente deveriam estar mais engajadas na disputa em curso sobre modelos de trabalho mais ou menos flexíveis.

Em sua dimensão mais imediata, que gera mais discussão e recebe mais cobertura, é uma questão de vida ou morte para o home office, legado hoje muito ameaçado da pandemia. Nela, porém, está (ou deveria estar) embutido um debate mais profundo sobre condições de trabalho com implicações que transcendem a esfera organizacional e ajudam a moldar a social.

Esquemas de trabalho flexíveis, que propiciam controle sobre quando e onde trabalhar, são inclusivos e beneficiam carreiras femininas, dado o fator maternidade. Daí a provocação às mulheres para que se mobilizem em defesa da flexibilidade no trabalho e, sempre que possível, liderem esse movimento. Há bons argumentos históricos e econômicos por trás da proposta.

A organização do trabalho administrativo em escritórios nos quais as pessoas se reúnem para labutar ao mesmo tempo em grandes espaços compartilhados é uma invenção do pós-Guerra.

Os administradores de empresas que os projetaram foram os primeiros “company men”, oriundos das recém-desmobilizadas forças armadas nos Estados Unidos (e, em menor escala, na Europa Ocidental).

Suas referências eram industriais e militares. Do fordismo, a concepção de fluxos de trabalho administrativo como uma linha de montagem, com alguma especialização e muitos processos. Do taylorismo, a chamada organização científica do trabalho. Da caserna, disciplina e a hierarquia que resultou no formato de organograma que perdura até nossos dias.

Evidente que é um modelo desenhado por homens para homens. Grosso modo, a chegada das mulheres aos escritórios – como secretárias – vai se dar nos anos 1960. Uma ou duas temporadas de Mad Men bastam para ter uma ideia daquele, digamos, clima organizacional.

Nobel para uma pioneira

Corte para outubro de 2023, e temos o Nobel de Economia concedido à americana Claudia Goldin, por suas pesquisas sobre mulheres no mercado de trabalho. Ela é uma pioneira na perfeita acepção da palavra. Primeira mulher titular do departamento de Economia de Harvard, terceira a receber o Nobel de Economia, Goldin realizou a primeira pesquisa abrangente sobre a participação da mulher no mercado de trabalho ao longo dos dois últimos séculos.

“As mulheres estão amplamente subrepresentadas (…) e, quando trabalham, ganham menos que os homens. Claudia Goldin vasculhou os arquivos e coletou mais de 200 anos de dados dos EUA, permitindo-lhe demonstrar como e por que as diferenças de gênero nos ganhos e taxas de emprego mudaram ao longo do tempo”, afirmou a Academia Real de Ciências da Suécia, ao justificar sua escolha. “Nunca teremos igualdade de gênero até que também tenhamos igualdade entre casais”, disse a própria Goldin ao New York Times após o anúncio do prêmio.

Sua lógica é irretocável e nos traz de volta à questão da maternidade. Pagar menos a mulheres e preteri-las nas promoções é, historicamente, uma compensação espúria e não-declarada das empresas por esperados períodos de ausência do trabalho e licença-maternidade das que se tornam mães – à qual se soma a desconfiança de que o tempo, a energia e a dedicação dessas profissionais estarão, a partir de então, divididos entre trabalho e família. Logo, enquanto não houver igualdade plena entre casais nos cuidados domésticos/familiares, a disparidade existirá.

Se e quando atingiremos essa igualdade é questão que exige respostas de cientistas sociais. Da perspectiva organizacional, o enfrentamento do problema gira em torno de flexibilidade, para acomodar duplas e triplas jornadas enquanto o patriarcado não cai, e governança, para evitar que o que se concede com a mão do home office se roube com a da progressão de carreira.

É neste sentido que a discussão sobre o futuro do trabalho remoto deve ser vista num contexto mais abrangente com profundas implicações sociais. “O modelo híbrido de trabalho não deve durar muito no Google – nem em outras grandes companhias. O modelo 100% presencial voltará a ser a norma”, observou Laszlo Bock, ex-vice-presidente global de Recursos Humanos do próprio Google (de 2006 a 2016) e autor do livro Um Novo Jeito de Trabalhar.

A principal crítica de Bock em relação ao trabalho híbrido é que esse sistema não permite uma avaliação de desempenho tão apurada como a do presencial. Segundo ele, quem puder optar por mais tempo de home office perderá os melhores salários e também bonificações por produtividade.

Perto dos olhos

A preocupação é válida, já tem nome e descrição. Chama-se viés de proximidade e é o risco de desigualdades entre funcionários que ficam mais tempo em casa e aqueles que vão ao escritório com mais frequência. Algo que pode fazer o tiro da flexibilidade sair da culatra. Em vez de gerar oportunidades, aprofundar desigualdades ao longo de linhas raciais e de gênero.

Trata-se, também, de fenômeno já estudado e batizado de estigma da flexibilidade: a percepção negativa e discriminação em relação a profissionais que optam por modelos de trabalho flexíveis. E o desejo de flexibilidade é particularmente forte entre aqueles que têm sido historicamente subrepresentados: pessoas negras, mulheres e as mães trabalhadoras.

A pauta, sim, é complexa. Coloca o trabalho flexível no centro da luta por equidade de gênero, identifica no presente a oportunidade única de redirecionar o curso da História e reconhece o risco de revezes que anulem ganhos. Merece ou não o engajamento de lideranças femininas?

* Alexandre Teixeira é jornalista e escritor, autor de cinco livros sobre trabalho, entre eles O Dia Depois de Amanhã

Imagem: Sandy Millar, via Unsplash