COLUNA - ALEXANDRE TEIXEIRA

O Enem e os obstáculos 'invisíveis' na carreira da mulher

O tema da prova tratou de um segredo escondido às vistas de todos: a dificuldade de incorporar o "D" de diversidade na sigla ESG

O Enem e os obstáculos 'invisíveis' na carreira da mulher
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Surpresa. Celebração. Revolta. Poucas vezes um tema de redação causou tanta comoção quanto os “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”, na formulação (tortuosa) do Enem.

Se era mesmo desconhecida para tanta gente, a atenção a casas, crianças, idosos e quem mais precise, quase 100% a cargo de mulheres, é daquele tipo de “segredo” escondido bem às nossas vistas.

E, se a ideia é jogar luz sobre esse tipo de distorção social muito maldisfarçada, vale estudar cada linha de um estudo recém-divulgado pela McKinsey, em parceria com a ONG LeanIn.org, sobre mulheres no ambiente de trabalho.

Segundo o relatório da pesquisa, elas hoje estão mais ambiciosas do que antes da pandemia – além de tão comprometidas com suas carreiras e interessadas em promoções quanto os homens.

Enfrentam, todavia, obstáculos às vezes “invisíveis” no caminho para a liderança sênior. Anos de dados acumulados mostram, por exemplo, que mulheres sofrem microagressões no trabalho a uma taxa muito superior à dos homens. Têm probabilidade duas vezes maior de serem confundidas com alguém mais jovem e ouvir comentários sobre seu estado emocional. 

Microagressões são um tipo de discriminação cotidiana muitas vezes enraizada em preconceitos. Ao contrário do que sustenta um dos mitos sobre a mulher no trabalho contestados neste estudo, é grande o seu impacto nas mulheres.

Embora as mulheres tenham feito progressos no alto escalão, os ambientes de trabalho têm um longo caminho pela frente antes de alcançar a verdadeira paridade de gênero. A pandemia é um marco importante, porque, de acordo com o estudo, a flexibilidade no local de trabalho está alimentando os avanços femininos. No entanto, apesar de alguns ganhos arduamente conquistados, a representação das mulheres não está acompanhando o ritmo.

Merece especial atenção o quarto e último dos mitos investigados pela McKinsey: são principalmente as mulheres que desejam – e se beneficiam – do trabalho flexível. Na realidade, tanto homens como mulheres veem a flexibilidade como um dos três principais benefícios de empresas para funcionários, perdendo só para planos de saúde, e a consideram fundamental para o sucesso das suas empresas. A flexibilidade no local de trabalho está acima até mesmo de benefícios testados e aprovados, como licença parental e assistência aos filhos.

Ocorre, porém, que, à medida que a flexibilidade se transforma de algo agradável para uns poucos funcionários em um benefício crucial para a maioria, as mulheres passam a valorizá-la mais. “Isso se deve provavelmente ao fato de ainda realizarem uma quantidade desproporcional de cuidados infantis e de trabalho doméstico”, informa a McKinsey.

Nada menos do que 38% das mães com filhos pequenos afirmam que, sem flexibilidade no local de trabalho, teriam de abandonar a empresa ou reduzir o horário de trabalho. Este é um fenômeno bem conhecido e estudado com interesse, batizado de “estigma da flexibilidade”.

Contudo, para as mulheres, o trabalho híbrido ou remoto envolve muito mais do que flexibilidade. Quando trabalham remotamente, elas enfrentam menos microagressões e têm níveis mais elevados de segurança psicológica.

Além disso, os homens beneficiam-se desproporcionalmente mais do trabalho nos escritórios: em comparação com as mulheres, têm de sete a nove pontos percentuais mais de probabilidade de estarem “por dentro” do que acontece, de receberem a mentoria e os patrocínios de que necessitam e de terem as suas realizações notadas e recompensadas. A suposta invisibilidade dessa realidade é incompatível com o desafio de incorporar plenamente as políticas de diversidade e inclusão à agenda ESG.

Para adicionar um “D” à sigla, é preciso enfrentar o que o Enem chamaria de “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade dos obstáculos no caminho das profissionais mulheres”. Isso nos traz de volta a um tema que ameaça se tornar recorrente nesta coluna: a violenta investida empresarial contra os modelos de trabalho mais flexíveis tem na mulher sua vítima primordial.

Há novos e importantes dados sobre a batalha em curso entre três correntes de pensamento: defensores do trabalho remoto e sem fronteiras, da manutenção do status quo e da volta para o passado presencial. O report WeWork 2023 Latam (com 3 mil brasileiros entrevistados) revelou há duas semanas que (apenas) 64% da força de trabalho da região hoje atua em modo híbrido – desses, 64% vão ao escritório duas ou três vezes por semana. Um ano atrás, quando saiu o relatório de 2022, eram 78% os profissionais latino-americanos em modelos híbridos.

Eles estão perdendo espaço tanto para o presencial puro (que cresceu de 10% para 18% em um ano) como – surpresa! – para o remoto puro, que passou de 12% para 18% no mesmo período.

Esta migração para o remoto, se confirmada por outros estudos, é nova. Precisa ser entendida. Já a volta para o passado 100% presencial é uma ameaça conhecida, que parece ganhar tração a cada nova fornada de dados. Problema: quem gostou de trabalhar em casa não entende por que, depois de anos fazendo um bom trabalho à distância, precisa estar (mais) presente no escritório – e, como vimos, tal sensação é maior entre as mulheres.

Ao gestor linha-dura – do tipo que sugere a quem se preocupa com clima que procure emprego em fábrica de ar-condicionado –, uma advertência: essa insatisfação vai se transformar em ação. Trabalhadores(as) deverão privilegiar modelos remotos ou híbridos. Já nos dias de hoje, 69% dos homens e 86% das mulheres dizem que opções de trabalho remoto estão entre os principais fatores ao escolher um novo emprego. No médio-longo prazo, modelos inflexíveis, empurrados de cima para baixo, resultam em perda de talentos e/ou dificuldade para atraí-los.

Modelos flexíveis, bem desenhados e comunicados, por outro lado, são um diferencial precioso para as marcas empregadoras. A agenda DESG, com “D” de “diversidade”, enfrenta os desafios e invisibilidades desse outro tipo de mudança climática, da porta para dentro das organizações.

Alexandre Teixeira é jornalista e escritor, autor de cinco livros sobre trabalho, entre eles O Dia Depois de Amanhã