Exposição fomenta arte antirracista nos livros e nas paredes

Mostra de ilustrações em cartaz em São Paulo revela diversidade de artistas negros no Brasil e provoca mercado de literatura infantil

Ilustração de Rodrigo Andrade, publicada em 'Com Qual Penteado eu Vou?'
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O mercado editorial brasileiro levou um susto com a abertura da exposição “Karingana -Presenças Negras no Livro para as Infâncias”, no mês de julho, no Sesc Bom Retiro, em São Paulo.

A mostra reúne 92 obras, retiradas de 67 livros infantis e produzidas por 47 artistas negros. Ela é apenas o recorte de um mapeamento de mais de 200 livros e 80 artistas que retratam a infância de crianças negras no Brasil como são, como podem e devem ser: sem estereótipos nem preconceitos, e com muita diversidade.

A apuração e a seleção dos trabalhos foram feitas pela curadora Ananda Luz, pesquisadora de literatura para a infância, mestre em Ensino e Relações Étnico-Raciais pela Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), aluna de doutorado em difusão do conhecimento e coordenadora da pós-graduação O Livro para a Infância, n’A Casa Tombada.

Luz não arrisca definir um marco inicial para essa produção contemporânea. Conta apenas que, no âmbito da sua pesquisa, a data inicial é 1986. “Os artistas e autores negros, nessa época, não faziam parte do grande mercado editorial brasileiro, mas existiam e estavam sendo publicados.”

A história mais recente do Brasil, porém, traz dois marcos muito emblemáticos que deram visibilidade a essa produção. O primeiro deles é a lei 10.639, de 2003, atualizada em 2008 pela lei 11.645.

Juntas, elas obrigam o ensino de história e de cultura afrobrasileiras e de outras etnias nas escolas brasileiras em todos os níveis – ensino infantil, fundamental e médio – e buscam valorizar a diversidade cultural e combater o racismo e a discriminação.

Elas impulsionaram naturalmente o mercado editorial, que precisou produzir livros com esse conteúdo para atender aos editais do governo.

O impacto das cotas

O segundo marco é a lei de cotas, de 2012, que garante a reserva de vagas em todas as universidades e institutos federais para estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas.

A conquista de políticas públicas como essas ajudou autores e artistas negros, até então excluídos, a entender os caminhos para a publicação e abriu mercado de trabalho. Mostrou também a importância de escrever a própria história. Muitos deles puderam ler pela primeira vez livros a que não tiveram acesso em suas infâncias.

Faltava, ainda, que crianças e famílias negras pudessem se ver nas histórias infantis. Não apenas em narrativas de dor e sofrimento, muito menos em personagens estereotipados e em imagens desumanizadas.

Faltavam histórias que pudessem ser espelho, inspiração e que fizessem sonhar. Eram urgentes narrativas que retratassem sua cultura e valores ancestrais, diversos em si e que se misturaram, ao longo do tempo, com os dos brasileiros.

Foram esses valores, chamados de valores civilizatórios afrobrasileiros, que nortearam os critérios para a seleção dos livros, cujas ilustrações compõem a exposição. Eles estão refletidos também na montagem da exposição – recursos gráficos e visuais, circuito, posicionamento das obras. São eles: memória, ancestralidade, religiosidade, oralidade, cooperação, ludicidade, circularidade e musicalidade.

A escolha dos autores foi baseada na diversidade técnica e regional. Há no mínimo um representante de cada região do Brasil e múltiplas maneiras de ilustrar, como, por exemplo, com aquarela, tinta acrílica, carvão ou desenho digital.

A exposição é acessível a pessoas de qualquer idade. Todo o material foi produzido numa linguagem adequada às crianças, e educadores do Sesc circulam pelo espaço para ler as informações a quem precisar. Os narradores das histórias disponíveis em áudio são negros, e a equipe responsável, majoritariamente negra.

A entrada é gratuita.

Karingana – Presenças Negras no Livro para as Infâncias

Até 28 de janeiro de 2024
Espaço Expositivo – 2o andar
Sesc Bom Retiro
Alameda Nothmann, 185
São Paulo – SP
O catálogo está disponível aqui.

Para não sair do Bom Retiro

Aproveite que você foi visitar Karingana e dê um pulo na Aigo, a nova livraria do bairro, independente e multicultural, a 10 minutos a pé do Sesc Bom Retiro. Com 60 m2, o espaço tem um acervo voltado às comunidades da região, que há 140 anos acolhe imigrantes em São Paulo.
São coreanos, chineses, pessoas do Leste Europeu, do leste asiático, árabes, bolivianos, paraguaios e muitos outros. Entre os brasileiros, os nordestinos. Há livros em português e nos idiomas de origem, e também livros nacionais.

A livraria define-se como um espaço para resgatar as origens, exercitar a coexistência com outras identidades e imaginar possibilidades transculturais. Foi fundada por três sócias descendentes de coreanos, que cresceram no Bom Retiro nos anos 80 e 90 e agora voltam com essa espécie de presente para o bairro.

Quando perguntei o que significava Aigo, elas disseram que o termo é de tradução difícil, mas que pode ser usado em momentos de susto, surpresa ou frustração. “A gente gosta de traduzir como o famoso ‘Eita!’”.

Tudo indica que muita gente vai entender.

Mais uma sugestão de exposição

A Caixote, casa editorial independente que publica para crianças e jovens, descobriu-se uma das editoras com mais obras expostas em Karingana, a mostra do Sesc Bom Retiro que celebra a presença negra na literatura infantil.

Tocada por esse fato, deu vida a uma ideia que já vinha sendo gestada havia tempos: inaugurou uma galeria de arte com obras que saem das páginas dos livros.

A primeira exposição, Padê, reúne ilustrações dos autores e artistas negros publicados pela própria Caixote. A palavra padê indica uma oferenda feita ao orixá Exu – entidade de religiões africanas – e também significa reunião em iorubá.

“Quis ecoar o impacto de Karingana sobre a reflexão e a discussão do racismo no mercado editorial”, explica Isabel Malzoni, sócia-editora da Caixote e idealizadora da Galeria Página. “Com a galeria, vamos reunir artistas e fazer uma oferenda à literatura infantil”, diz.

As exposições não ficarão restritas às obras dos livros publicados pela Caixote e tratarão de temas transversais às infâncias e com impacto para as sociedades onde estão inseridas. Já está na programação uma mostra sobre violência e infância.

A ideia de criar uma galeria de arte apenas com obras que saem de livros vem para reforçar que o livro é uma arte autônoma e que suas imagens têm sentido dentro e fora do livro.

“Quando a ilustração sai da página e vai para a parede, a relação com quem observa muda. Queremos reproduzir o encantamento de quando nós recebemos os originais diretamente das mãos dos artistas para fazer o livro”, explica Malzoni.

Padê – Autores Negros nos Livros da Editora Caixote
Até 16 de setembro
Página – Galeria de Ilustração
Rua Purpurina, 307
São Paulo – SP
Telefone: (11) 94198-0030
De quinta a sábado, das 11h às 20h (outros dias e horários, com agendamento).

(A imagem que ilustra este texto, de autoria de Rodrigo Andrade, foi publicada em “Com Qual Penteado Eu Vou?” e faz parte da exposição Karingana)