“É evidente que os brancos não promovem reuniões secretas às cinco da manhã para definir como irão manter seus privilégios e excluir os negros. Mas é como se assim fosse”.
O diagnóstico da psicóloga brasileira Cida Bento, eleita pela revista The Economist uma das cinquenta pessoas mais influentes do mundo no campo da diversidade, talvez fosse um pouco diferente ao avaliar a cruzada contra políticas de diversidade, equidade e inclusão (DEI) do governo de Donald Trump.
A volta do republicano à Casa Branca tem sido marcado por canetadas para acabar com políticas públicas de inclusão nos Estados Unidos, e mesmo antes de sua posse empresas americanas (muitas multinacionais) já vinham recuando ou abandonando compromissos para que seu quadro de funcionários reflitam a sociedade em que se inserem.
Na política americana, DEI tornou-se uma arma poderosa e um dos principais temas da campanha presidencial de Trump. Esses ventos são sentidos no Brasil. Não só porque muitas das empresas do país estão presentes aqui e podem ter que seguir as diretrizes da matriz, mas também porque a guerra cultural já reverbera no discurso de altos executivos brasileiros.
O Reset entrevistou cinco especialistas que prestam consultoria de diversidade. Eles foram unânimes na avaliação de que as diferenças de ambiente regulatório, político e demográfico entre Brasil e EUA seguram esse tipo de retrocesso por aqui – mas alguns já veem mudanças nas políticas e posturas no país.
“Esse movimento não é novo, mas estamos sentindo mais forte as empresas segurarem os projetos. No último mês, tivemos três propostas de companhias que já são clientes que estavam quase fechadas, mas na última hora foram canceladas”, diz uma executiva que presta consultoria para grandes empresas, que pediu para não ser identificada. “A justificativa foi que o orçamento não foi liberado e que iriam esperar uma melhor definição de cenário.”
Na avaliação dela, as incertezas macroeconômicas brasileiras pesam sobre as decisões relacionadas ao orçamento das companhias – e o movimento anti-DEI que ganha força nos EUA serve como uma justificativa extra para derrubar essas iniciativas.
As pesquisas sobre políticas de diversidade nas empresas brasileiras ainda não mostram recuos substanciais e cortes de orçamentos da área, mas há uma impressão entre pessoas ouvidas pelo Reset de que houve uma estagnação silenciosa da agenda desde o ano passado, já em resposta ao retorno de Trump ao poder.
Quem fica, quem sai
Desde a posse de Trump, em meados de janeiro, todos os dias há nos jornais notícias de grandes empresas abandonando ou reduzindo seus compromissos de diversidade – tanto dentro de casa quanto em seus produtos ou serviços.
As primeiras foram Amazon e Meta, cujos fundadores, Jeff Bezos e Mark Zuckerberg, aderiram ao projeto de Trump. A elas se seguiu uma lista de nomes estelar, que inclui Disney, Ford, Goldman Sachs, Google, McDonald’s e Walmart.
Em comunicados internos, as empresas citaram entre as justificativas a busca para cumprir as regras do governo Trump e o ambiente legal – uma referência à decisão da Suprema Corte que derrubou ações afirmativas.
Em alguns casos, isso afeta os negócios diretamente. A Meta eliminou seu programa de checagem de fatos nos EUA e nomeou pessoas próximas a Trump para sua diretoria e seu conselho. O Goldman Sachs anunciou que não vai mais recusar a estruturação de IPOs de empresas cujos conselhos fossem compostos apenas por homens brancos.
A onda só cresce, mas companhias de peso reafirmaram publicamente suas políticas de diversidade, equidade e inclusão: American Airlines, Apple, JP Morgan, McKinsey e Microsoft fazem parte desse grupo.
O site de notícias Axos fez uma lista – atualizada diariamente – apontando quem está revertendo seus compromissos de diversidade e quem segue firme.
É lei
Não há por aqui uma perspectiva de desmonte da mesma magnitude. Um dos motivos é o arcabouço legal brasileiro, que traz obrigações de inclusão para as empresas.
O país tem há 30 anos uma lei que as obriga a contratar pessoas com deficiência. Desde 2023, outra lei definiu que as companhias devem adotar medidas para garantir igualdade salarial entre homens e mulheres – e precisam reportar dados de transparência salarial para o Ministério do Trabalho duas vezes ao ano.
Um ano antes, uma lei incluiu a prevenção e o combate ao assédio sexual e outras formas de violência dentro do trabalho no escopo da CIPA, cuja sigla passou a significar Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e de Assédio.
“Aqui as ações afirmativas são vistas como algo legal, não existe nenhum risco jurídico para organizações que queiram aplicá-las, uma diferença relevante em relação aos Estados Unidos”, diz Gabriel Levi, fundador da consultoria de DEI Mutünci.
Nos EUA, elas passaram a ser vistas como um potencial risco corporativo depois que a Suprema Corte americana decidiu, em 2023, que ações afirmativas nas universidades são inconstitucionais.
O STF (Supremo Tribunal Federal) no Brasil, ao contrário, julgou constitucional o uso de ações afirmativas, como o sistema de reserva de vagas (cotas) por critério étnico-racial, na seleção de universidades e no serviço público federal.
Outra diferença é que, no momento, o Brasil tem um Executivo favorável a esse tipo de política. O governo de Lula tem mantido ou ampliado reforços e proteções legais para grupos minorizados, com ministérios especificamente dedicados à diversidade: o das Mulheres, e da Igualdade Racial e o dos Povos Indígenas.
Contranarrativa
A expectativa dos consultores é que as empresas que já têm programas estabelecidos os mantenham, pois investimentos foram realizados para atrair e reter talentos.
“Pode haver uma desaceleração do avanço da pauta de uma maneira geral. Estamos vivendo uma disputa narrativa, e em breve teremos eleições também no Brasil. É um risco muito iminente”, diz Thalita Gelenske, CEO e fundadora da Blend Edu, startup que desenvolve soluções de diversidade para empresas.
“Mas o que a gente tem visto aqui são as empresas criando estratégias para fazer um contramovimento, para sustentar a importância dessa agenda.”
Movimentos empresariais brasileiros ligados à agenda publicaram, no fim de janeiro, um manifesto para reafirmar seus compromissos com diversidade e inclusão.
Há também iniciativas individuais, como a da Natura, de instar seus pares. “Seria bom ter um contraponto, as empresas que têm se posicionado no sentido de continuar progredindo”, disse João Paulo Ferreira, presidente da companhia, em entrevista recente.
A ideia é que o contraponto faça peso entre os indecisos. “Se tem no Brasil uma empresa que estava pensando em estruturar um programa de diversidade, com certeza agora é uma empresa que pensa duas vezes”, observa Gelenske.
Uma pesquisa da Blend Edu dá pistas de como empresas estão discretamente deixando de falar sobre o tema. Realizada em meados de 2024, ela ouviu 99 empresas. “Temos visto algumas adaptando bastante a forma que estão conduzindo, as ações que estão priorizando para 2025. Entre as 10 ações mais recorrentes de DEI adotadas, vimos um um foco maior em campanhas de comunicação interna, com as externas saindo do ranking”, conta a CEO da startup.
Uma fotografia
Iniciativas de diversidade corporativa não são novas no Brasil. A lei de pessoas com deficiência e iniciativas da sociedade como o CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), fundado por Cida Bento, existem há décadas.
Mas o impulso só veio mais recentemente, também a partir de ventos do norte.
Empresas americanas passaram a anunciar compromissos públicos de aumentar a diversidade e inclusão nos seus quadros de funcionários após o assassinato de George Floyd, um homem negro morto por policiais brancos em maio de 2020. O crime desencadeou uma onda de protestos pelo mundo.
No Brasil, o divisor de águas também foi o assassinato de um homem negro: Beto Freitas, espancado até a morte por seguranças do Carrefour em Porto Alegre, em novembro do mesmo ano.
O retrato atual é de que a diversidade aumentou nas empresas, mas a desigualdade ainda é grande quando se avaliam quais posições mulheres, pessoas negras, com deficiência e LGBTI+ ocupam.
“O número de empresas com ações destacadas ou programas estruturados de diversidade e inclusão obviamente aumentou desde 2018, tivemos um avanço no sentido de formalizar e institucionalizar essas ações”, diz Gabriela Augusto, diretora da Transcendemos Consultoria. “Mas os resultados ainda estão aquém do esperado, porque a gente avançou apenas na base.”
Um dos estudos mais abrangentes sobre DEI, o “Perfil Social, Racial e de Gênero das Maiores Empresas do Brasil e Suas Ações Afirmativas”, do Instituto Ethos, avaliou as 1.000 maiores empresas e as 100 maiores instituições financeiras do Brasil em 2024.
Ele mostra que nos conselhos de administração da amostra 81% são homens e 19% mulheres, 94% são brancos e 6% são negros (a soma de pretos e pardos). A relação se inverte na base da hierarquia: entre aprendizes, 57% são mulheres e 42% são homens, 61% são negros e 38% são brancos. (Veja os números completos na tabela abaixo.)
Distribuição por gênero e raça nos níveis hierárquicos
Homem | Mulher | Branco | Negro* | Amarelo | Indígena | |
Conselho de administração | 81,4 | 18,6 | 93,8 | 5,9 | 0,2 | 0,2 |
Diretoria | 72,6 | 27,4 | 84 | 13,8 | 2,2 | 0,1 |
Gerência | 62,7 | 37,3 | 71,4 | 26,1 | 2,4 | 0,2 |
Supervisão, chefia, coordenação | 61,4 | 38,6 | 58,6 | 39,1 | 2 | 0,2 |
Quadro funcional | 58 | 42 | 45,7 | 52,3 | 1,6 | 0,4 |
Trainees | 27,5 | 72,5 | 27,4 | 70,8 | 1,7 | 0,1 |
Estágiários | 45,5 | 54,5 | 51,6 | 46,8 | 1,3 | 0,3 |
Aprendizes | 42,6 | 57,4 | 38 | 60,8 | 1 | 0,3 |
População brasileira | 48,5 | 51,5 | 43,5 | 55,5 | 0,4 | 0,8 |
A pesquisa destaca que, entre os dirigentes, houve um aumento no reconhecimento da baixa representatividade de grupos minorizados em seus quadros. Trata-se de um avanço em relação à pesquisa anterior, de 2016.
“Pensando em ciclos, a gente venceu essa compreensão do problema”, diz Ana Lucia Melo, diretora-adjunta do Instituto Ethos. “Olhando o histórico, havia uma negação da questão racial, por exemplo, com base na ideia de uma suposta democracia racial.”
Levi, da Mutünci, observa que o grupo que mais se beneficiou dos programas de diversidade até o momento foram as mulheres brancas. “É importante entender que os programas de DEI têm seus limites, eles não conseguem resolver todos os problemas, e que os resultados mostram que grupos específicos têm se beneficiado mais largamente do que outros”, afirma.
Os consultores avaliam que é preciso ter um olhar mais abrangente sobre o tema e ações pelas empresas. A pesquisa da Ethos conclui que é fundamental que empresas que já ampliaram o número de mulheres passem a trazer as mulheres negras para seu foco de ação. E que aquelas que estabeleceram equidade racial nos níveis funcionais definam metas para ampliar a presença de negros nas posições gerenciais e executivas.