Como a onda anti-woke interfere nas políticas de diversidade

Empresas americanas estão reduzindo pautas identitárias; no Brasil, ainda não há movimento semelhante

Como a onda anti-woke interfere nas políticas de diversidade
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Depois dos protestos globais que se seguiram ao assassinato de George Floyd por policiais em Minnesota, nos Estados Unidos, muitas empresas americanas correram para reforçar suas políticas de diversidade, equidade e inclusão (DEI).

Passados quase quatro anos, essa pauta começa a sofrer um refluxo importante.

Várias companhias, especialmente no setor de tecnologia, têm reduzido suas áreas de DEI, cortado investimentos e mudado o discurso, indicando a influência de uma crescente onda anti-woke.

O termo, que indica um “despertar” para questões como o racismo estrutural, foi criado pelos movimentos progressistas. Mas, de um tempo para cá, woke tem sido um adjetivo pejorativo usado como arma por políticos de extrema-direita – com reflexos também no mundo corporativo.

Em julho, a Microsoft cortou uma equipe interna focada em diversidade e inclusão.

“O verdadeiro trabalho de mudança sistêmica tipicamente associado aos programas de DEI [Diversidade, Equidade e Inclusão, na sigla em inglês] não é mais crítico para os negócios como em 2020”, escreveu um líder da equipe em um e-mail enviado a milhares de funcionários da big tech, segundo revelou o site Business Insider.

Outras grandes empresas do setor de tecnologia como Google, Meta, Zoom e Snap cortaram postos e áreas de diversidade entre o ano passado e este ano.

Companhias de outros setores também entraram na onda, como a John Deere, gigante dos implementos agrícolas, que anunciou em julho que iria deixar de apoiar pautas identitárias.

“A existência de cotas de diversidade e identificação de pronomes nunca foi e não é política da companhia”, disse a empresa em comunicado.

A decisão da John Deere veio após um post e um vídeo de um cineasta e influenciador de direita chamado Robby Starbuck sobre a área de diversidade e inclusão da companhia viralizar no X (antigo Twitter).

Starbuck elenca uma série de iniciativas de DEI da empresa e supostas evidências de que a John Deere teria “abraçado políticas de esquerda que são diametralmente opostas aos valores da maioria dos agricultores”.

O post veio logo após a companhia ter anunciado demissões por causa de  vendas e lucros fracos no segundo trimestre.

A movimentação reflete o papel cada vez mais predominante da guerra cultural na política norte-americana.

Desde a confirmação de Kamala Harris como virtual candidata presidencial pelo Partido Democrata, deputados republicanos passaram a chamá-la de “contratação DEI”, em referência aos processos de seleção afirmativos das empresas.

Filha de pai jamaicano e mãe indiana, Harris é a primeira mulher negra a concorrer como candidata à presidência por um dos dois grandes partidos do país.

Vários Estados controlados pelos republicanos vêm passando legislações para limitar discussões e políticas em torno da diversidade.

Na Flórida, uma lei conhecida como “Stop Woke Act” tentava restringir debates nas universidades e treinamentos nas empresas sobre raça, gênero e sexualidade. Aprovada em 2022, a legislação teve suas principais partes derrubadas pela Justiça.  

Inteligência artificial

Nas big techs, parte do recuo das iniciativas de diversidade e inclusão pode ser explicado pela necessidade de maior investimento em inteligência artificial, segundo Ricardo Sales, CEO da consultoria Mais Diversidade e professor da Fundação Dom Cabral.

“Tenho ouvido colegas de outras áreas do mercado, e o que eles disseram é: ‘Olhe o guarda-chuva mais amplo: 2024 teve uma redução grande de investimento em pessoas nas organizações.’ O foco é em outras competências, como inteligência artificial, e isso teria abocanhado uma parte significativa [dos recursos]”, afirma Sales.

Camila Achutti, CEO e fundadora da escola de cursos de tecnologia Mastertech e delegada do W20 Brasil, grupo de engajamento do G20 que promove equidade de gênero, diz que a eliminação de áreas de diversidade pode representar riscos para as big techs.

“O timing dessa mudança é péssimo, porque temos uma IA sustentada em padrões, estereótipos, que arraiga baixa diversidade, baixa inclusão. Sem as áreas [de DEI] para monitorar isso, esses erros podem se aprofundar”, afirma.

“Vamos investir na máquina, mas sem deixar de investir nas pessoas. É preciso lembrar que as pessoas operam as máquinas e podem reproduzir uma série de vieses”, acrescenta Sales.

E no Brasil?

No Brasil, as empresas brasileiras não estão adotando um posicionamento semelhante às companhias americanas – ao menos publicamente.

“A gente não tem até agora nenhuma evidência de um desdobramento concreto desse movimento. Mas temos a preocupação, que é legítima, afinal de contas as empresas norte-americanas têm uma presença grande aqui”, afirma Sales.

A neutralidade tem marcado a posição das empresas brasileiras, de acordo com Viviane Elias Moreira, head de governança e compliance da startup Circular Brain, professora de curso de MBA e integrante de comitês consultivos de ESG.

“Acredito que seja por dois motivos: ou porque essa empresa nacional nunca se posicionou [em relação à temática], ou porque prefere se manter em silêncio, que é mais conveniente diante do cenário de polarização que a gente tem”, diz.

Sales lembra que o Brasil vem dando sinais opostos aos dos Estados Unidos nos últimos anos. Ele cita decisões recentes de renovação da validade das cotas raciais vindas do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF).

Já a Suprema Corte americana decidiu no ano passado que as ações afirmativas para aumentar a quantidade de estudantes negros, latinos e outros grupos subrepresentados nas universidades do país eram inconstitucionais.

“É importante que a gente crie diferenciações no sentido de entender que Estados Unidos e Brasil partilham de contextos sobre a polarização parecidos em alguns aspectos, mas o contexto jurídico é completamente diferente”, afirma.

Por isso, segundo ele, empresas brasileiras que tentarem imitar as ações das americanas poderão enfrentar problemas de diferentes tipos mais à frente.

“Quem desconsiderar o nosso contexto pode tomar decisões que, no Brasil, terão um custo alto em termos de reputação e, eventualmente, jurídico”, diz.

Para Viviane Elias, os riscos ainda estão muito associados à imagem, sem que haja uma responsabilização legal para as empresas.

“A linha de largada de outros países para diversidade e inclusão tem base em leis, e aqui a gente não tem. Um exemplo: quantas empresas já foram condenadas por não terem mulheres em cadeiras de tomada de decisão no Brasil?”, afirma.

Puro marketing

Há dois anos, uma pesquisa feita pela consultoria Korn Ferry indicou que 85% das empresas brasileiras haviam acelerado suas iniciativas de diversidade, mas somente 14% acreditavam que esses esforços estavam sendo efetivos.

Com o passar do tempo, ficou claro que, por trás das várias ações lançadas, havia muito marketing e pouco pé na realidade. Na avaliação de Angela Donaggio, fundadora da consultoria Virtuous Company, passado o frisson, as companhias abandonam as iniciativas – que já tinham nascido superficiais.

“Assim como foi com ESG, com governança corporativa, [o tema da diversidade] serve para sair na foto, colocar no checklist, mas as iniciativas não vão adiante, não são vistas como estratégicas e nem estão nos processos de gestão”, afirma.

Para Elias, ainda falta intencionalidade nas iniciativas das empresas. (Tecla SAP: no mundo da diversidade, intencionalidade quer dizer que a empresa está de fato preocupada em mudar suas estruturas.)

“Existem programas de inclusão de jovens negros em vagas de estagiário ou trainee, por exemplo. Cadê esses jovens na liderança quatro anos depois? Aí você vai atrás e, geralmente, eles estão fora das empresas, empreendendo, criando startup, porque não conseguiram espaço dentro daquela organização”, afirma.

Mesmo quando implementadas, as iniciativas podem ter qualidade duvidosa, gerando o efeito contrário do pretendido, de acordo com Angela Donaggio.

Um exemplo prático: a empresa diz que se compromete com a inclusão de pessoas negras e mulheres em cargos de alta gestão, mas não comunica direito a iniciativa e seus líderes não parecem estar engajados de fato.

“Isso pode gerar nos homens e nas mulheres – mas principalmente nos homens brancos – uma reação negativa do tipo ‘Só querem [uma pessoa na alta gestão] se ela for negra, então, não vou ser promovido nessa empresa’”

O que dizem as empresas

A John Deere respondeu, via assessoria de imprensa, que “todas as informações disponíveis acerca do tema são as que constam na nota oficial da John Deere, publicada na última terça-feira (16) pela empresa no X (antigo Twitter). A companhia se mantém à disposição para futuras pautas.”

Já a Microsoft não respondeu ao pedido de posicionamento até o fechamento desta reportagem.