
Lógica, simples e criativa. Assim o empresário Jayme Garfinkel, acionista controlador da Porto Seguro, definiu o projeto de lei que propõe cobrar mais impostos dos ricos e isentar quem tem menor renda.
De autoria do governo do presidente Lula (PT), a proposta tramita na Câmara dos Deputados e recebeu o apoio de pares que também seriam impactados pela medida, como o cineasta e herdeiro Walter Salles e o ex-CEO do Itaú Unibanco Candido Bracher.
“É correto e precisamos aumentar o imposto [de quem ganha mais] porque há uma distribuição de renda totalmente absurda e incrivelmente injusta no Brasil”, disse Garfinkel ao Reset.
De perfil mais discreto, o principal acionista do grupo segurador fundado por seu pai não costuma falar publicamente sobre assuntos do debate público. Mas atendeu prontamente ao pedido de entrevista por avaliar que a proposta é justa e pode ser o início de uma mudança necessária no sistema tributário brasileiro.
“Eu recebo dividendos e rendimentos de investimento, que são isentos. Na hora H, não pago imposto de renda efetivo. Então, eu, que sou privilegiado, tento cumprir a minha parte com filantropia – que, aliás, não tem benefício fiscal”, explica. “Está tudo torto.”
A proposta apresentada pelo governo ao Congresso é de ampliar a faixa de isenção do imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil mensais (R$ 60 mil ao ano) e uma tributação mínima de até 10% para a alta renda, os chamados “super-ricos”. O imposto seria progressivo para quem ganha anualmente entre R$ 600 mil e R$ 1,2 milhão, com alíquota entre 2,5% e 10%.
O pulo do gato é que, se aprovada, a taxação incidirá sobre a somatória de toda a renda anual, o que inclui itens hoje não tributados ou que têm tributação considerada baixa, como dividendos, juros sobre capital próprio, aluguéis e rendimento de aplicações financeiras.
A estimativa do governo é de que 140 mil brasileiros ricos sejam afetados por essa nova forma de taxação, enquanto 10 milhões seriam beneficiados com o aumento da faixa de isenção – atualmente, estão isentos do pagamento de IR aqueles que ganham até dois salários mínimos mensais, o equivalente a R$ 3.036.
Jayme Garfinkel estaria entre os ricos afetados. Ele e sua família aparecem na 28º posição da lista brasileira da Forbes. Segundo a revista americana, 55 brasileiros aparecem no seu ranking de bilionários (em dólar) mais recente.
Se sancionada ainda em 2025, as novas regras passam a valer já no próximo ano. Em 2026, a isenção de IR para quem ganha até R$ 5 mil custaria aos cofres públicos R$ 25,8 bilhões. Para compensar a perda de arrecadação, a taxação de até 10% sobre os super-ricos renderia R$ 34 bilhões.
“O grande problema era realmente pagar a conta da isenção, achei uma forma simples e criativa de resolver. Eu gosto das coisas simples”, afirma Garfinkel.
Início da mudança
O principal acionista do grupo Porto Seguro, que faturou R$ 37 bilhões em 2024, avalia que esta é a oportunidade de o país começar a fazer uma transição de seu sistema tributário.
“Tem que ser de forma progressiva, porque é algo que depende de confiança. Essa medida atual é boa, porque ela é limitada, prática e começa a resolver o problema [de desigualdade tributária]”, diz o empresário. Conforme o novo sistema tributário conquistasse essa confiança, inclusive com comprovação de destinação adequada dos recursos arrecadados pelo governo, seria possível avançar mais, inclusive ampliando a alíquota, diz.
Garfinkel avalia que a tributação sobre a renda de super-ricos é, neste momento, melhor do que a proposta de taxação de fortunas, ou seja, do estoque de riqueza. Por se tratar de uma decisão de âmbito nacional, esse segundo formato poderia gerar fuga de capital para outros países.
O Brasil pleiteia que a taxação dos super-ricos seja feita de forma coordenada entre países, para justamente evitar que fortunas sejam transferidas. Essa foi uma das bandeiras da presidência do Brasil no G20 para combater a desigualdade, o que rendeu uma menção inédita ao tema no comunicado final da cúpula do ano passado.
Mas o tema tem sido bem aceito no andar de cima?
“Pelo menos entre as pessoas com quem eu circulo, todo mundo achou bom”, diz Garfinkel. “Mas meus amigos são daquela turma liberal, que acredita em democracia, equilíbrio, que é preciso tratar os temas com racionalidade”, pondera.
Antes de falar com o Reset, o empresário diz que conversou sobre o assunto com o controller da Porto Seguro – esse profissional costuma fazer o elo entre a contabilidade e a alta administração para garantir que as decisões sejam tomadas com base em dados financeiros sólidos e atualizados.
“Ele me lembrou que o certo para o país seria diminuir o imposto de renda sobre as empresas e aumentar sobre os dividendos de pessoa física”, conta. A lógica é de que, com isso, o empresário teria incentivo para manter a empresa capitalizada, o que aumentaria a possibilidade de investimentos e criação de empregos.
Seguradoras e bancos pagam, hoje, uma alíquota de 40% de imposto. “Seguradora não tem tanto problema de investimento, mas, para a indústria e outros setores intensivos em capital, seria muito melhor pagar menos imposto e investir mais na empresa.”
Justiça tributária
A ideia de que o sistema de arrecadação de impostos deve ser justo, equitativo e proporcional à capacidade contributiva de cada cidadão remonta à filosofia política clássica. Em outras palavras, defende que quem pode mais, paga mais; quem pode menos, paga menos.
Na América Latina, a discussão sobre justiça tributária ganhou força a partir dos anos 1990, com o aumento da desigualdade social e a constatação de que os sistemas tributários da região eram regressivos, ou seja, os mais pobres pagam proporcionalmente mais impostos.
No Brasil, a ideia sempre circulou mais em espaços da esquerda. Mas nas últimas semanas viralizou e furou a bolha: ganhou discurso do diretor do filme brasileiro “Ainda Estou Aqui”, premiado com o Oscar; artigo do ex-CEO do maior banco privado do país na Folha de S.Paulo, um dos maiores jornais no Brasil; e postagens de atores globais da novela Vale Tudo.
Ganhou tração também nas ruas e nas redes sociais. O PT, o partido do presidente Lula, lançou uma campanha que usa inteligência artificial para explicar as desigualdades do atual sistema tributário; os perfis da Presidência da República nas redes sociais fizeram postagens didáticas e explicativas; e manifestações populares aconteceram na Avenida Paulista e na Faria Lima – um grupo fez protesto na sede do Itaú BBA.
A movimentação acontece como resposta à derrota do governo federal ao ter a proposta de aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) derrubada pelo Congresso. O racha foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF), que marcou para esta terça-feira (15) uma reunião de conciliação entre Executivo e Legislativo.
“O problema da distorção tributária no Brasil não é o aumento de IOF, mas os benefícios de isenções fiscais, que são enormes no Brasil, estimados em R$ 500 bilhões”, diz Garfinkel. “Não dá para tirar essas isenções de uma vez, mas isso precisa ser endereçado aos poucos.”
Neste contexto, o PL que propõe maior tributação de ricos, apresentado em março, voltou à pauta. Ele avançou, na semana passada, na comissão especial da Câmara dos Deputados em que está sendo analisado. O seu relator, o deputado Arthur Lira (PP-AL), leu seu parecer e propôs poucas mudanças. A proposta deve ser votada na comissão especial esta semana antes de ser levada ao plenário.