
Segurança alimentar, sustentabilidade e ética na produção de alimentos já não caminham em paralelo. Hoje, formam um único debate, que coloca a produção animal no centro das atenções. Não se trata de extingui-la, mas de transformá-la permanentemente com base em ciência, ética e responsabilidade social. A proteína animal permanece como um dos pilares da nutrição, da saúde pública e da justiça social. Desconsiderar esse papel seria comprometer o direito humano à alimentação adequada.
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) estima que a pecuária represente cerca de 40% do valor da produção agrícola global e garanta a subsistência de 1,7 bilhão de pessoas.
Em países de baixa e média renda, leite, carne e ovos são ferramentas diretas de combate à fome e à desnutrição infantil. Projeções conjuntas da FAO e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) apontam que a demanda global por proteína animal crescerá cerca de 14% até 2030, impulsionada pelo crescimento populacional, pela urbanização e pela mudança nos padrões alimentares.
A importância da proteína animal também é cultural e histórica. Estudos de universidades como Harvard e Stanford mostram que o consumo de carne e leite foi determinante, desde o neolítico, não apenas para a nutrição, mas para o desenvolvimento de estruturas sociais, o avanço tecnológico e a formação de vínculos comunitários.
A carne, presente em muitas celebrações, tornou-se um marcador de identidade cultural em diferentes sociedades. Ainda hoje, nutrientes como vitamina B12, ferro e aminoácidos essenciais permanecem difíceis de substituir, especialmente para crianças, gestantes e populações em vulnerabilidade.
No Brasil, essa discussão assume particular relevância. O país reúne o maior rebanho comercial do mundo, é líder em exportações de carne bovina e, ao mesmo tempo, convive com insegurança alimentar em parte da população. A proteína animal aqui não é apenas uma mercadoria estratégica para o comércio exterior, mas também um recurso fundamental de inclusão social, cultural e nutricional.
A transformação já começou
As críticas ao modelo produtivo, muitas delas pertinentes, pedem respostas baseadas em transformação. O bem-estar animal tornou-se um requisito inadiável. A professora Temple Grandin, da Colorado State University, demonstrou que ajustes simples no manejo e nas instalações, como corredores curvos, controle de ruídos e iluminação adequada, reduzem de forma significativa o estresse dos animais. Esse paradigma já inspira protocolos de certificação como o Certified Humane e o Global GAP, cada vez mais presentes também no Brasil.
A sustentabilidade é outro pilar essencial. Não há mais espaço para sistemas de produção baseados em desperdício e degradação. O Brasil possui cerca de 160 milhões de hectares de pastagens, dos quais mais de 30% apresentam algum grau de degradação, segundo a Embrapa. Recuperá-los é uma oportunidade concreta de produzir mais sem expandir fronteiras, reduzir emissões e aliviar a pressão sobre biomas nativos. E já existem exemplos práticos nesse sentido.
Sistemas de integração lavoura-pecuária-floresta, validados por instituições como a Embrapa e a Esalq/USP, têm mostrado que é possível aumentar a produtividade, recompor carbono no solo, diversificar a renda do produtor e ainda promover ganhos de biodiversidade. Iniciativas de pecuária regenerativa em diferentes regiões produtivas do país confirmam que essa transformação não é apenas teórica, mas uma realidade em andamento.
Parte fundamental da solução
Nada disso, no entanto, será possível sem o engajamento do produtor rural. Ele é o agente que toma decisões diárias sobre manejo, bem-estar animal e uso dos recursos naturais. Para que a mudança se consolide, é necessário oferecer apoio técnico, linhas de crédito específicas, assistência rural e segurança jurídica. Sem esses instrumentos, a transição corre o risco de se restringir a poucos casos de excelência, em vez de se tornar um processo massivo e estrutural.
A proteína animal não é inimiga da sustentabilidade. Quando produzida de forma ética e responsável, ela é parte fundamental da solução. O verdadeiro desafio não está em escolher entre produzir ou preservar, mas em construir uma racionalidade capaz de integrar eficiência, bem-estar e cadeias livres de desmatamento.
Garantir a todos o direito de comer bem, com segurança e dignidade, é mais do que uma meta setorial. É um imperativo civilizatório do qual depende o futuro da pecuária e da própria segurança alimentar global.
* Paulo Pianez é diretor global de sustentabilidade de Marfrig e BRF.