O elefante na sala das negociações do clima

O ressarcimento por perdas e danos já causados pela mudança climática segue sem resolução há décadas – mas não será possível ignorar o assunto por muito mais tempo

Agricultor tenta salvar colheita em campo de arroz submerso por enchente em Bangladesh
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O que acontece se não conseguirmos evitar um aumento de temperatura perigoso da Terra? E se, além disso, também fracassarmos em construir resiliência e adaptabilidade a um planeta mais quente? Perda de áreas agricultáveis, áreas costeiras, biodiversidade, disponibilidade hídrica. Perdas financeiras, territoriais, humanas. Deslocamentos populacionais, migrações de países inteiros.

E não se trata só do fracasso na mitigação e na adaptação climáticas. A ciência estima que muitas dessas perdas hoje já são inevitáveis: há um limite para a adaptação a um planeta mais quente. Ou seja, algumas perdas e danos simplesmente vão acontecer e esse é um processo irreversível.

Por que falamos tão pouco sobre esse elefante na sala?

Durante a Climate Week, em Nova York, a advogada e negociadora climática britânica Farhana Yamin perguntou ao enviado especial de mudanças climáticas dos Estados Unidos, John Kerry, se o seu governo tem intenção de apoiar um fundo para compensar financeiramente as perdas e danos dos países mais vulneráveis à mudança do clima.

Kerry disse que é mais importante destinar recursos para mitigação e adaptação do que “apontar dedos” e se sentir culpado. A declaração revelou o aparente descaso das lideranças globais com a situação dos mais vulneráveis: compensar as injustas perdas sofridas pelos pobres simplesmente não é uma prioridade.

Como escreveu Yamin sobre o episódio no seu LinkedIn: “Esperava-se mais empatia com os 35 milhões de paquistaneses que estão sofrendo por causa de enchentes provocadas pelo clima”.

Perdas e danos relacionados às mudanças climáticas costumam ser descritos como os impactos que não puderam ser evitados por meio da mitigação e adaptação.

Os esforços de mitigação – ou seja, de reduzir ou remover as emissões de gases de efeito estufa da atmosfera – são a principal forma de evitar e minimizar perdas e danos. Nesse sentido, quanto menor a ambição de mitigação, mais quente fica o planeta e maior é o risco de perdas e danos.

Quando a ambição da mitigação não é suficientemente alta, os esforços de adaptação podem ajudar a evitar ou minimizar as perdas e danos. Caso esses esforços não sejam suficientes ou fracassem, pode haver “impactos residuais”, ou perdas e danos.

As perdas e danos podem também acontecer em decorrência de  processos climáticos de curso lento (como a elevação do nível do mar, a acidificação dos oceanos e perda de biodiversidade e desertificação, entre outros), bem como de eventos climáticos extremos (como chuvas torrenciais, furacões e tufões).

Ocorre que há perdas e danos que não são mais “evitáveis”, seja porque a mudança do clima já está causando efeitos para os quais não se construiu resiliência no tempo certo, seja porque existem limites para o que é possível se fazer em termos de adaptação.

É o caso da região costeira de Bangladesh (foto), onde os níveis crescentes de salinidade tornaram simplesmente impossível o cultivo de qualquer tipo de arroz.

Ou então de Kiribati, país-ilha que em 2014 precisou adquirir terras em Vanua Levu, a segunda maior ilha de Fiji, antecipando as estimativas da ciência de que toda a sua população vai precisar ser realocada num futuro próximo devido aos impactos da elevação do nível do mar.

Sem falar das perdas não-econômicas: estudos estimaram um número de cerca de 60 mil suicídios de agricultores na Índia relacionados à perda de lavouras afetadas pela mudança do clima ao longo de três décadas.

Impasse antigo

Disso podemos concluir duas coisas: 1) é necessário melhorar a adaptação climática, para evitar tais perdas e danos na medida do possível; e 2) são necessárias abordagens para lidar com as perdas e danos relacionadas aos impactos que não podem ser evitados pela mitigação e adaptação.

Historicamente, as negociações climáticas internacionais sob a Convenção do Clima da ONU (UNFCCC) trataram principalmente da mitigação e adaptação às mudanças climáticas.

Mas a verdade é que desde as negociações para a criação da UNFCC, em 1991, a ilha de Vanuatu já havia proposto um fundo internacional para apoiar medidas de enfrentamento dos impactos negativos do aumento da temperatura global.

Em comparação com temas como a descarbonização, hoje no mainstream, perdas e danos passaram os últimos 30 anos à margem das discussões sobre o clima.

O assunto foi contemplado no Acordo de Paris, assinado em 2015, mas cheio de ressalvas. 

Eis a controvérsia, em resumo: os países ricos temem que, ao reconhecer oficialmente “perdas e danos”, abririam-se a portas para que os mais pobres cobrem algum tipo de reparação financeira pelos prejuízos que sofrem hoje e que podem ser ainda maiores no futuro.

Houve algum progresso nas duas últimas COPs. No ano passado, em Glasgow, formalizou-se a Rede de Santiago sobre Perdas e Danos, uma rede de cooperação para discussões sobre o assunto. E se definiu que seriam realizados workshops para discutir a necessidade de um mecanismo de financiamento para poder compensar essas perdas.

Tensão na COP27

Mas o mundo em desenvolvimento quer mais do que isso, e esse será um dos pontos quentes da COP27, que acontece entre 6 e 18 de novembro no resort egípcio de Sharm el-Sheik.

O plano é falar concretamente sobre o mecanismo de financiamento, para além de uma mera série de workshops.  Não vai ser uma conversa fácil.

Há quem diga que os países desenvolvidos acumularam três dívidas: uma dívida de mitigação (suas emissões históricas deixaram pouco espaço atmosférico para os países em desenvolvimento se desenvolverem); uma dívida de adaptação (ao contribuir desproporcionalmente para os impactos aos quais os países em desenvolvimento devem se adaptar); e uma dívida de perdas e danos (nos casos em que nenhuma quantidade de adaptação evitará os impactos da mudança climática).

Só que, no caso das perdas e danos, em vez de sentar e negociar, os países desenvolvidos decidiram simplesmente fingir que nada está acontecendo. Parece que vão deixar que a dívida continue se acumulando até que se torne inadministrável.

O risco é que o assunto extrapole os níveis do tratado internacional, atingindo os tribunais domésticos ou internacionais, ou outros atores não-estatais e entes privados. Além disso, a situação de pobreza e as vulnerabilidades dos países desfavorecidos seria agravada e perpetuada, com reflexos globais causados por movimentos migratórios, guerras e conflitos transfronteiriços.

É difícil prever o que pode acontecer para mudar essa situação: será que está faltando os países ricos sentirem na pele os efeitos mais devastadores da mudança do clima?

Será que falta uma posição ainda mais contundente dos países pobres e barganhas no contexto político? Será que vai ser resolvido nos tribunais? Será que o capital privado pode ajudar?

Seja como for, sistemas de injustiça coletiva não podem durar para sempre, muito menos debaixo do guarda-chuva da ONU. Algo precisa ser feito para lidar com o elefante da justiça climática na sala.