COLUNA - WINSTON FRITSCH

Por que a paralisia do Fed impacta a transição ecológica brasileira

Juros altos nos Estados Unidos afetam os níveis de investimento globais – inclusive os necessários para conter a mudança climática

Por que a paralisia do Fed impacta a transição ecológica brasileira
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A transição ao baixo carbono em uma trajetória de crescimento econômico, dentro dos limites globais de emissão de gases de efeito estufa acertados no Acordo de Paris, requer transformar a estrutura produtiva mundial no sentido de reduzir sua intensidade de carbono, isto é, as emissões por unidade de PIB. Isso exige anos de enorme volume de investimento em tecnologias eficientes de redução e sequestro de carbono e em adaptação às mudanças do clima. 

E o planeta está atrasado. Portanto, mesmo com incentivos de preços corretos e grande esforço no desenvolvimento de novas tecnologias de impacto climático em todo o mundo, para atingirmos a trajetória que leva ao net zero em 2050 é urgente aumentar substancialmente e manter elevado o nível de investimento global.

Nesse sentido, a política macroeconômica dos EUA, que determina taxas de juros que colocam um piso no custo do capital em todo o mundo, afetando decisivamente o nível de investimento global, é um importante determinante indireto do sucesso da luta para evitar uma catástrofe climática. 

A armadilha do FED

Depois de implementar violento aperto monetário ao longo de 2022, o Fed, Banco Central americano,  encontra hoje grande dificuldade para iniciar um esperado ciclo de reduções das taxas de juros dada a resiliência da inflação americana. Isso começa a afetar o crescimento em várias regiões e estressar a estabilidade financeira global, gerando clara deterioração do clima de investimento mundial. 

Essa é uma armadilha que resultou, em grande parte, do atraso com que o Fed reagiu aos previsíveis impactos inflacionários da política fiscal ultraexpansionista do início do governo Biden – em parte, ironicamente, consequência do IRA, seu grande programa de apoio à transição energética –, que se somou às pressões naturais sobre a inflação mundial na saída da pandemia.

Enquanto vários países pivotaram suas políticas monetárias quase imediatamente em resposta ao aumento da inflação mundial pós-pandemia – como o Brasil, que iniciou seu ciclo de enorme alta da Selic em março de 2021 –, o Fed só começou a agir exatamente um ano depois, quando a inflação americana atingiu assustadores 7,5% em janeiro de 2022, seu maior valor em 40 anos, e os preços de bônus do Tesouro começaram a cair. Em 11 aumentos sucessivos o Fed elevou o Funds Rate dos 0,25% onde se estabilizara desde a pandemia, até impressionantes 5,5% em julho de 2023, nível próximo ao atingido durante a crise do Lehman Brothers.

Entretanto, mesmo esse enorme choque monetário não vem sendo capaz de baixar a taxa de inflação nos EUA. Os últimos dados mensais continuam a mostrar a resistência à queda dos índices de inflação, num ambiente de crescimento da atividade econômica e do emprego. Nesse quadro, não surpreende que as autoridades tenham pedido “paciência” em relação a cortes de juros, afastando sine die as esperanças de um início de um ciclo de queda de juros já na primeira metade deste ano.  

Mas a resistência da inflação americana às elevadíssimas taxas praticadas pelo Fed não resulta somente do tamanho do impulso fiscal recente e das perspectivas explosivas de crescimento da dívida. Ela revela uma perda de eficácia da política monetária como base da política de estabilização de preços nos Estados Unidos pela conjunção de vários outros fatores. 

Primeiro, a economia americana experimenta condições muito favoráveis ao crescimento criadas pelo investimento privado induzido pela difusão de novas tecnologias, onde suas empresas lideram em escala global, e por significativo aumento de produtividade.

Segundo, as políticas de imigração mais favoráveis do atual governo propiciam crescimento razoavelmente elástico da oferta de mão de obra. Os níveis de imigração líquida retornaram para mais de um milhão de pessoas em 2022-23, pouco acima da média histórica desde o início do século e cerca de três vezes maior do nível atingido em 2020-21 pelo efeito combinado das políticas restritivas do governo anterior e da pandemia.

Terceiro, pressões protecionistas, em parte alimentadas por um sentimento anti-China, generalizado e muito vocal, definitivamente não ajudam no combate à inflação. 

Por último e muito importante, desapareceram dois fatores estruturais que foram críticos para o sucesso das políticas monetárias de inflation targeting e a ancoragem de expectativas inflacionárias nos EUA durante o ciclo de quase três décadas da dupla Volcker – Greenspan no comando do Fed. 

Essas políticas, como notei em artigo que previa o fim dos juros baixos em 2021, operavam sob o efeito cumulativo de duas potentes forças deflacionárias que estão desaparecendo. Por um lado, a transferência de parte substancial da capacidade industrial global de empresas dos países ricos para áreas de salários reais muito mais baixos – principalmente, mas não só, a China – possibilitada pela liberalização comercial e de investimentos diretos. Por outro, o aumento da taxa de participação da população em idade de trabalhar na população total ocorrida nas economias ocidentais com a chegada dos baby boomers ao mercado de trabalho e do grande crescimento da participação feminina.

Ou seja, a política do Fed agora é de “wait and see” e, por um período ainda indefinido, criará um estresse crescente no mercado internacional de capital. Essa má notícia soma-se à deterioração do equilíbrio geopolítico global, que repercute sobre preços relativos de energia, compondo ambiente extremamente desfavorável para o financiamento do investimento climático a curto prazo.  

E nós com isso?

A curto prazo não há muito a fazer. Mas na hipótese ainda realista de que todas essas tensões se reduzirão progressivamente ao longo de 2024, aumenta a responsabilidade do Brasil, como um estado novamente comprometido com a transição ao baixo carbono e líder temporário do G20 ao longo deste ano, em implementar duas linhas de ação. 

No plano doméstico, deveríamos acelerar a (necessariamente demorada) implementação da política de incentivos ao investimento climático e à transição energética liderada pelo Ministério da Fazenda – regras para o mercado de carbono doméstico, incentivos financeiros ao investimento em projetos de impacto climático, um arcabouço regulatório apropriado nos setores-chave para a transição ecológica –, enquanto continuamos os esforços de estabilização fiscal de longo prazo e redução controlada de juros, aproveitando uma conjuntura de balanço de pagamentos extremamente promissora. O papel do Congresso no sucesso dessas políticas, que exigirão a aprovação rápida de extensa e complexa agenda legislativa já apresentada pelo governo, será crucial. 

No plano multilateral do G20, o governo deve continuar lutando para o aumento do comprometimento do sistema financeiro internacional com soluções que aumentem os fluxos de investimento internacional privado para os países em desenvolvimento, para acelerar a implementação do Artigo 6 do Acordo de Paris e para conter a onda de protecionismo verde vinda da Europa.