OPINIÃO: O mundo pós-pandemia não necessariamente será menos globalizado, por Paulo Hartung

OPINIÃO: O mundo pós-pandemia não necessariamente será menos globalizado, por Paulo Hartung
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A pandemia colocou em evidência a fragilidade da vida humana e expôs mazelas dos nossos sistemas econômicos e sociais. Além de mais de 600 mil mortos já registrados, o mundo lida com uma previsão de forte retração econômica, que só tem precedente na Segunda Grande Guerra. 

A tragédia do presente pauta uma reflexão múltipla e pungente sobre o futuro, de novos comportamentos humanos que essa pandemia está trazendo e de tendências que já estavam em curso e que se aceleram com a crise.

O mundo pós-pandemia será mais digitalizado em diversas atividades, mais endividado (setor público, empresas e famílias) e talvez menos globalizado. As maneiras como as pessoas vão restabelecer seus valores e prioridades no pós-pandemia vão ter impacto no entretenimento, turismo e relacionamento social e urbano.

Enquanto o isolamento se faz necessário, as distâncias se reduzem também por ferramentas digitais. Já estamos vendo a digitalização socioeconômica em caráter permanente, principalmente em relações de trabalho, consumo, finanças e entretenimento. Empresas estão avaliando o trabalho remoto com um espectro mais amplo do que antes da quarentena, inclusive reavaliando as necessidades efetivas da estrutura física de escritórios e atividades de suporte.

Essa postura cria um efeito em cadeia em outros segmentos, como mercado imobiliário, com o possível redesenho dos centros urbanos e novos desejos residenciais, já que os componentes da escolha da moradia também tendem a mudar, com a necessidade de espaço dedicado para o trabalho remoto e desancorando a escolha à proximidade da sede da empresa.

Nesse cenário urbano e de digitalização, o comércio virtual, que já tinha nichos sólidos, acabou por derrubar muitos tabus, passando a ser adotado para diversos bens, inclusive os duráveis. 

No âmbito sociopolítico e cultural, acontecimentos que no passado tinham impactos apenas regionalmente agora possuem capacidade de virar ocorrências planetárias muito rapidamente. Esse foi o caso da reação ao assassinato de George Floyd pela polícia norte-americana, que em alguns dias virou um movimento global.

O mundo gritou junto “Eu não consigo respirar” e demonstrou outro fator humano reforçado pela pandemia, que é a ampliação da agenda social, de respeito às diferenças e de busca da igualdade social.

Menos global?

O refreamento da globalização é outra questão que se coloca. Para uns, a pandemia incrementa essa tendência que começava a despontar antes mesmo da covid-19.  A crise expôs a vulnerabilidade do modelo, principalmente a interdependência das cadeias produtivas e a divisão internacional do trabalho segmentado.

Apesar de ser uma lógica vitoriosa na questão de custo, depender de fornecedores externos para muitos insumos mostrou-se um risco materializado na interrupção da cadeia e da troca internacional durante os momentos extremos da pandemia.

Dentro desse processo, vemos o esvaziamento de órgãos multilaterais como Organização Mundial de Comércio (OMC) e Organização Mundial da Saúde (OMS), muito pressionado pela postura norte-americana liderada por Donald Trump.

Mas os Estados Unidos estão em ano eleitoral e o resultado pode diluir um pouco essas tendências, com a disputa entre o candidato Joe Biden, que está liderando as pesquisas atualmente, em contrapartida ao atual presidente.

Biden tem em sua plataforma um discurso de preocupação com as mudanças climáticas, que caminha dentro de outra tendência forte na Europa, a do New Green Deal, colocando cada vez mais as questões da sustentabilidade e do clima na política e acordos comerciais.

Nas eleições das principais cidades francesas, foi vista a ascensão de políticos verdes. Ao mesmo tempo, Angela Merkel, da Alemanha, que tem atuado fortemente pela pauta de combate ao aquecimento global, assumiu a presidência rotativa da União Europeia.

É exatamente por causa de fatos da geopolítica, como os que acabamos de citar, além de tantas outras componentes políticas, culturais, econômicas e produtivas a interferir nas teias planetárias de interação, que não se pode prever com clareza o cenário futuro da globalização.

Por ora, tem-se que o discurso antiglobalista vem reforçado em alguns dos seus pontos pelas fraturas da pandemia, mas não se trata de questão simples o desmonte da integração econômica global.

O dia depois de amanhã

No campo social e do comportamento, experiências históricas e estudos de psicologia humana indicam possíveis impactos frente a situações de adversidade muito grande, nas quais houve aumento do medo e da presença da morte no dia a dia.

A dualidade da subjetividade humana diante de catástrofes, como esta de 2020, se expressa em distintas reações dos indivíduos, seja agindo defensivamente, buscando se preservar em um mundo que se tornou mais inseguro, seja, numa linha oposta, buscando aproveitar melhor o presente.

O professor Eduardo Gianetti da Fonseca abordou em seu novo livro “O valor do amanhã” as reações humanas após calamidades, como é o caso nos EUA no período após o ataque às Torres Gêmeas.

Segundo ele, nas semanas e meses que se seguiram houve queda abrupta na venda e consumo de produtos dietéticos e academias de ginásticas. A análise que ele faz é que as pessoas ficaram tão inseguras que não tinha mais sentido fazer sacrifícios hoje em troca de benefícios no futuro incerto.

Na versão tropicalizada deste cenário, o brasileiro, mais expansivo, protagonizou explosões de viver no fim da Gripe Espanhola, em 1918. Segundo Ruy Castro conta no prólogo “O carnaval da guerra e da gripe”, passada a onda de pânico daquela pandemia, o Rio de Janeiro criou um dos maiores carnavais da sua história até então. E foi essa sede de viver sem pensar na Quarta-feira de Cinzas e na catástrofe vencida que formatou o Carnaval até hoje.

Os desafios brasileiros

Enquanto a vacina não chega e não é viável pensar em Carnaval pós-covid-19, o Brasil ainda tem muitos desafios. O país entrou na pandemia com fragilidades econômicas e sociais, o que descortinou a falta de liderança, quando a nação mais necessita de uma coordenação.

Enfrentamos um cenário de dívida elevada e baixo poder de investimento público. A desigualdade estrutural torna o país ainda mais injusto. Milhares de famílias vivem à margem da sociedade organizada, sem CPF, sem uma situação regular de emprego, sem o acesso aos serviços de saúde, com educação deficitária e com números vergonhosos, como o de 100 milhões de brasileiros sem coleta de esgoto e outros 35 milhões que não possuem acesso a água tratada.

Não bastasse este cenário, criamos uma crise ambiental, indo na contramão da tendência sustentável mundial. O Brasil registra ininterruptamente aumento do desmatamento na Amazônia, levando cada vez mais o país para longe do seu papel de liderança em questões de meio ambiente, sustentabilidade e mudanças climáticas, posição que vinha sendo incrementada desde a Eco 92. 

A tragédia amazônica leva a Europa a retomar o discurso protecionista contra a concretização do acordo bilateral com o Mercosul, pacto que tem grande potencial de impulsionar a economia brasileira.

O setor empresarial expressou sua preocupação com o tema, com o envio de carta assinada por mais de 55 CEOs de grandes empresas e entidades para o governo brasileiro, cobrando compromisso público com a agenda do desenvolvimento sustentável.

As movimentações mostram resultados iniciais positivos, com altas autoridades do país se conscientizando de que precisam agir com urgência para debelar essas ações ilegais. Olhos e diálogos foram reabertos para o tamanho dessa crise ambiental, social e econômica.

Tudo isso ocorre em paralelo ao presente pandêmico que continua afligindo de forma terrível o país, com milhares de vidas humanas sendo perdidas, desemprego avançando e brasileiros desamparados.

Precisamos estar atentos e preparados para que, ao fim da crise de saúde, o Brasil tenha fôlego emocional, social, político e financeiro para sair em pé e possua tração para buscar por um futuro que não reproduza o passado nem se coloque como uma continuação deste tempo catastrófico.

*Paulo Hartung é economista, presidente-executivo da Ibá (Indústria Brasileira de Árvores), membro do conselho do Todos Pela Educação, ex-governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010/2015-2018)