O paradoxo do ar-condicionado num planeta que ferve

A energia consumida pelo ar-condicionado eleva as emissões de gases de efeito estufa – mas a refrigeração é cada vez mais questão de saúde pública

Dezenas de aparelhos de ar-condicionado
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Em 2023 vivemos recordes de altas temperaturas em todos os continentes. Num planeta cada vez mais quente, é inevitável que as pessoas se refugiem em ambientes refrigerados e que exploda a demanda por aparelhos de ar-condicionado residenciais, automotivos e comerciais.

Mas a refrigeração está num círculo vicioso no contexto das mudanças climáticas. Seu uso mais intenso eleva o consumo de energia, que por sua vez eleva as emissões de gases de efeito estufa (em países com a matriz elétrica suja, ou seja, a maioria) e contribui para o aquecimento da temperatura média do planeta.

O alto consumo de energia elétrica tem também uma grave consequência social e econômica para os países de baixa renda: a pobreza energética. A refrigeração aumenta expressivamente o gasto com energia elétrica, concorrendo com outras necessidades básicas. Sem falar no acesso aos aparelhos de ar-condicionado.

Questão de saúde

A necessidade de pensar em refrigeração de forma sustentável e inclusiva será uma questão de urgência crescente.

As consequências das ondas de calor para a saúde são muito graves. Um estudo publicado em julho deste ano pela revista Nature Medicine indicou que mais de 61 mil pessoas morreram em decorrência do calor na Europa durante o verão de 2022. Nos Estados Unidos, segundo estudo publicado na revista Science, um terço da população vive em condições de estresse de calor.

A situação é tão grave que a Organização Meteorológica Mundial emitiu um alerta para o aumento do risco de ataques cardíacos e mortes causados por altas temperaturas durante a noite. A Organização Mundial do Trabalho estima que em 2050 a exposição ao calor ameaçará a vida de 4 bilhões de pessoas no mundo.

A refrigeração é fundamental para garantir condições mínimas de saúde e bem-estar, principalmente para as pessoas mais vulneráveis. Residências, transporte público, escolas, hospitais e ambientes de trabalho necessitam cada vez mais de sistemas de refrigeração.

Porém menos de 20% da população brasileira possui aparelhos de ar-condicionado em suas residências, segundo os dados mais recentes do IBGE. No mundo, essa porcentagem é de apenas 8%. Na Índia, um dos países que mais vêm sofrendo com ondas de calor, o acesso está limitado a 5% da população.

Entre 25% e 50% da população mundial está potencialmente exposta ao estresse de calor devido à falta de refrigeração, de acordo com estimativas da Agência Internacional de Energia (AIE). O problema é mais crítico para as 760 milhões de pessoas em todo o mundo que não possuem nem sequer acesso à eletricidade.

O dilema é complexo. Como aumentar o uso de um equipamento que é um dos principais responsáveis pelo aquecimento global? Estima-se que o uso de aparelhos de ar-condicionado seja responsável por 10% do consumo global de energia e entre 4% e 8% das emissões globais de gases de efeito estufa, segundo o National Renewable Energy Laboratory e o Observatório Regional de Energias Renováveis da Cepal.

As emissões geradas pela refrigeração são maiores que a soma das emissões geradas pela aviação e navegação. O problema ficará ainda mais grave nas próximas décadas. A AIE calcula que a demanda de energia para uso de ar-condicionado deverá triplicar até 2050. É uma situação insustentável que exige mudanças urgentes.

Mitigação e adaptação

Para a solução desse paradoxo, as tecnologias, a infraestrutura e os modelos de negócios da refrigeração devem ser orientados pela mitigação dos fatores que causam as mudanças climáticas e também pela adaptação às novas condições ambientais, econômicas e sociais impostas pela nova realidade do clima.

Medidas de mitigação compreendem, além do uso de energias limpas, ganhos de eficiência, incluindo o uso de gases refrigerantes com menor impacto no efeito estufa. São necessárias também melhorias na instalação, manutenção e otimização do uso dos equipamentos.

Automação e tecnologias de monitoramento remoto, baseadas em internet das coisas e inteligência artificial, são fundamentais para oferecer climatização adequada com o menor consumo de eletricidade possível.

Mas essas ações são insuficientes. Avanços na eficiência reduziriam em apenas 20% o consumo de energia. É preciso investir também em tecnologias de refrigeração que não necessitam de energia: as soluções baseadas na natureza.

São medidas como aumento da cobertura vegetal e de água nas áreas públicas e privadas das cidades, fachadas e tetos verdes, ruas, calçadas e tetos com alta capacidade de reflexão dos raios solares, maior ventilação natural, construção com isolamento e janelas com baixa emissividade. Algumas dessas tecnologias já são usadas em edifícios modernos e luxuosos, mas elas precisam ser adotadas também em áreas periféricas, residências de pessoas de baixa renda e instalações públicas como escolas e hospitais.

Modelos de negócios também precisam mudar, com a incorporação dos princípios da economia circular e o uso compartilhado dos ativos, como os “distritos de refrigeração”. Trata-se de centrais com equipamentos de grande porte que fazem a refrigeração para um grupo de edifícios próximos. 

Nesse modelo de “cooling as a service”, o ar-condicionado se torna um serviço, como a eletricidade ou a calefação. O usuário paga uma tarifa mensal de acordo com o uso.

A indústria de equipamentos de refrigeração deve investir em tecnologias mais sustentáveis, mas deve ir além do modelo centrado no equipamento e passar a desenvolver capacidades para fornecer inteligência e soluções de refrigeração, incluindo aquelas baseadas na natureza.

O novo cenário de um planeta mais quente exige repensar toda a infraestrutura, a tecnologia e os modelos de negócios de refrigeração. Essa é uma mudança que depende de cooperação de empresas responsáveis por diferentes etapas nos sistemas de refrigeração, bem como a combinação de soluções de mercado, regulação e políticas públicas.

* Regina Sales Magalhães tem mestrado e doutorado em Ciência Ambiental pela Universidade de São Paulo e educação executiva em Transformação Digital pelo MIT. Trabalhou em grandes multinacionais na América Latina e na International Finance Corporation, além de ter atuado como consultora em negócios e sustentabilidade para empresas de diversos setores.

Imagem: Alexandre Lecocq, via Unsplash