COLUNA - CAROLINE DIHL PROLO

O martírio do povo gaúcho é um aviso para o mundo

A mudança do clima é uma tragédia real e não vale a pena correr mais riscos – não deixemos que isso tudo tenha sido em vão

Barcos fazem operação de resgate
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Desastres climáticos não são novidade no mundo, tampouco no Brasil. Mas não é todo dia que um desastre desses acomete 80% do território de um Estado federado do tamanho da Itália por mais de 15 dias (e ainda contando).

Não é todo dia que o aeroporto de uma capital brasileira fica parcialmente submerso.

Quando o rio que circunda uma cidade fica 5 metros acima de seu nível normal, avança pelas ruas e ocupa casas inteiras, não dá pra dizer que tudo vai ficar bem. Quando a água baixar, vai ter deixado destruição, sujeira, contaminação, doenças, casas saqueadas, vidas levadas, almas corroídas.

As enchentes de maio de 2024 no Rio Grande do Sul são a antecipação do futuro da catástrofe do clima. É o teste de laboratório do horror climático. E o herói desse filme de terror é o povo.

Uma cidade debaixo d’água: Eldorado do Sul, na região metropolitana de Porto Alegre, viu-se 100% inundada. As imagens dos resgates de barco mostram casas cobertas de água até o teto. A mesma situação ocorre em cidades vizinhas, como Canoas, que teve 80% dos domicílios afetados.

O que acontece quando uma população inteira perde seu território? Isso lembra a situação das pequenas ilhas-Estado no Pacífico que estão na iminência de ficar totalmente submersas pelo aumento do nível das águas do oceano, como Tuvalu e Kiribati. Tuvalu tem 11 mil habitantes; Eldorado do Sul tem 42 mil.

Tudo na catástrofe das enchentes do Rio Grande do Sul tem proporções assustadoras. O abrigo disponibilizado pela ULBRA (Universidade Luterana do Brasil), uma instituição de ensino privada de Canoas, está acolhendo 6 mil pessoas (das mais de 165 mil desabrigadas até o momento no estado).

Como disse o jornalista André Trigueiro na rádio CBN, “é como se fosse uma pequena cidade”. A população organizou um galpão para abrigar 2.500 cachorros resgatados. Muitos dos animais salvos das enchentes tiveram que aguentar 4 ou 5 dias se equilibrando em galhos de árvore e topos de telhados.

O resgate de Caramelo em cima do pequeno pedaço estreito de telhado foi acompanhado pelo Brasil todo nos noticiários. Os brasileiros nunca se esquecerão da primeira vez em que viram a bizarra cena de um cavalo no telhado. Espero que não esqueçam.

Os resgates foram reforçados por barcos e jet-skis particulares, uma mobilização que viralizou nas redes sociais e aparelhou uma Defesa Civil que já não conseguia dar vencimento aos pedidos de ajuda.

Uma mulher com sua equipe de protetores de animais salvou mais de 400 animais. Os pedidos de resgate tomaram conta dos grupos de WhatsApp dos gaúchos.

Pedidos de socorro de famílias, crianças e idosos, mulheres grávidas e bebês, famílias e seus cachorros e gatos. Tente dormir com isso. O povo não conseguiu.

Voluntários tomaram as ruas de rio com seus botes para resgatar vítimas, montaram abrigos, hospitais de campanha e acolheram desabrigados em suas casas. Quando o número de voluntários cadastrados atingiu 15 mil, a Defesa Civil de Porto Alegre já não conseguia mais dar conta dos pedidos.

Abrigos começaram a se proliferar de forma independente em todas as escolas da cidade. Pequenos comerciantes doaram remédios, alimentos e água, ou venderam itens a preço de custo. Logo já não havia mais colchões para vender nas lojas. As cidades ficaram desabastecidas. Já não havia mais água potável. O Prefeito de Porto Alegre aconselhou a população que tem casa no litoral que se deslocasse para lá. A cidade estava colapsando.

Muitos gaúchos descreveram a situação como de cenas de guerra. Isso porque além de lutar contra o avanço das águas, tiveram que combater o aumento da criminalidade.

Não só bandidos começaram a saquear as casas abandonadas como também a assaltar os voluntários em ações de resgate, por vezes até se fazendo passar por vítimas precisando de auxílio.

Essas situações se intensificaram tanto que o governo do Estado precisou pedir auxílio para a Força Nacional, que mobilizou mais de 400 soldados. As ações de resgate com embarcações privadas passaram a ser acompanhadas de policiais.

Pela internet, o povo registrou em fotos e vídeos as cenas do horror que os gaúchos estavam vivendo, emocionando brasileiros de todos os cantos que se mobilizaram em campanhas de doações e voluntariado. Surfistas e atletas olímpicos vieram de outros Estados para ajudar com os resgates.

Enquanto isso, os problemas começaram a surgir nos abrigos, com casos de estupro registrados, colocando a vida de mulheres e crianças em risco.

Os voluntários arregaçaram as mangas novamente e criaram abrigos especiais para mulheres e pessoas em condição de vulnerabilidade.

Com mais de seis dias de calamidade, começaram a surgir sintomas de leptospirose entre os que trabalharam no resgate e tiveram contato contínuo com a água contaminada durante os salvamentos. Quem vai cuidar dos voluntários?

Quando as mais de 80 mil pessoas hoje em abrigos improvisados vão conseguir retomar suas vidas? Quais são as consequências desse horror para o tecido social do Estado?

Os gaúchos jamais vão se recuperar emocionalmente porque não existe cura para o apocalipse. Tragédias sociais climáticas são definitivas. Não podem ser indenizadas. Não há dinheiro no mundo que compense esse nível de sofrimento humano. O povo gaúcho se martirizou para dar um aviso para o mundo inteiro: a mudança do clima é uma tragédia real e não vale a pena correr mais riscos. Não deixemos que isso tudo tenha sido em vão.