DUBAI – “Desafiador” é a descrição mais ouvida sobre o ano que passou, mas para o mercado voluntário de créditos de carbono 2023 foi um “annus horribilis” em todos os sentidos.
Na COP28, com o apoio da presidência da conferência, a indústria tenta mostrar que não só pode sobreviver à crise de credibilidade como sair fortalecida. O mercado voluntário é onde créditos de carbono gerados por desenvolvedores de projetos os vendem a empresas que querem compensar espontaneamente, e não por imposição regulatória, suas emissões de gases de efeito-estufa.
A reação a denúncias de fraudes, exageros e violações de direitos de populações vulneráveis já vinha acontecendo nos meses que antecederam a conferência do clima, e em Dubai o setor veio mostrar ao mundo uma espécie de contraofensiva.
Seis dos padrões de certificação de créditos de carbono anunciaram uma colaboração para aumentar a transparência do uso dos offsets e criar indicadores padronizados para medir benefícios adicionais à redução ou remoção de gases de efeito estufa, como o impacto socioeconômico nas comunidades.
Em paralelo, todas essas entidades anunciaram que vão se adequar às exigências do Integrity Council for Voluntary Carbon Markets, um órgão de governança independente que visa garantir a integridade desses ativos. Cada crédito de carbono equivale a uma tonelada de CO2 que deixou de ser emitida ou foi removida da atmosfera.
Denúncias de fraude, invasões de terra e exploração de populações em atividades que protegem a vegetação nativa em troca de créditos receberam grande repercussão na imprensa internacional este ano. Conhecidos pela sigla REDD+, esses projetos são os mais comuns no Brasil.
Com medo do risco de reputação, os clientes pisaram no freio. “Tínhamos contratos assinados, mas muitas empresas pediram para esperar”, diz Janaína Dallan, CEO da desenvolvedora Carbonext e presidente da associação do setor no Brasil, a Aliança Nature-Based Solutions. “Algumas têm a capacidade de fazer due diligence por conta própria, mas só as grandes. Muitos dos menores ficaram com medo.”
O volume de créditos gerados este ano deve ser 7% inferior em comparação com 2021, ano em que as transações começaram a acelerar e ultrapassaram pela primeira vez US$ 1 bilhão em transações.
Mas o melhor indicador da saúde do mercado são as aposentadorias, quando os créditos são efetivamente usados para compensação e saem de circulação – essas caíram 25%. Os dados são da consultoria Carbon Direct.
Diante do colapso de um mercado considerado peça-chave para a descarbonização e para a conservação da biodiversidade em países em desenvolvimento, o setor tenta apresentar em Dubai uma frente unida.
A investida tem apoio de peso. John Kerry, a mais alta autoridade americana nas negociações do clima, afirmou que o mercado de créditos de carbono “pode ser o maior mercado que o mundo já viu” e que “operações irresponsáveis fizeram uma injustiça com todos”.
Bankf of America e Morgan Stanley, do lado financeiro, e empresas como Amazon, Mastercard e McDonald’s anunciaram apoio a um programa do governo americano para financiar a transição energética em países como Nigéria e Chile em parte com a venda de créditos de carbono.
Os Emirados Árabes Unidos, que ocupam a presidência da COP28, também defendem que transações de toneladas de carbono sejam parte integral da estratégia de combate à mudança do clima.
As iniciativas no Brasil
Mas quem tem o problema de credibilidade mais grave para resolver são as empresas que trabalham com desmatamento evitado, ou seja, conservação de florestas que não foram derrubadas. A maioria usa metodologias da Verra, entidade sem fins lucrativos que domina o segmento de créditos REDD+.
Críticos dizem que o sistema tem uma falha fundamental: o próprio desenvolvedor estima as linhas de base contra as quais será medido o sucesso dos projetos. Isso abriria o caminho para números superestimados e créditos que não trazem nenhum benefício climático.
“Estamos fazendo uma mudança radical em relação a créditos de desmatamento”, disse ao Reset Andrew Howard, diretor-sênior de política climática e estratégia da Verra.
Segundo uma nova metodologia divulgada pela empresa dias antes da COP28, as linhas de base serão definidas pela própria Verra, levando em conta jurisdições inteiras e não só o entorno imediato da área das atividades de conservação. O sistema será implementado gradualmente ao longo dos próximos dois anos.
Esse freio de arrumação era necessário, mas os desenvolvedores estão pagando um preço: o sistema está praticamente paralisado, diz Plinio Ribeiro, CEO da Biofílica Ambipar e um dos pioneiros dos créditos de carbono no Brasil.
“No curto prazo, a situação é ruim, mas não esperava essa reação tão forte e organizada. Todo mundo se uniu para dizer: ‘A gente precisa mostrar o que tem de positivo nesse mercado’.”
O ‘mercado da ONU’
A discussão sobre a integridade é legítima e essencial, mas ignora dois pontos importantes, segundo Ribeiro. O primeiro é que as companhias ativas no mercado voluntário não usam os créditos como um “direito de poluir”.
“Uma pesquisa recente com 9 mil empresas mostrou que elas compensam uma parte muito pequena das emissões e estão muito mais avançadas na agenda de descarbonização”, afirma ele.
O segundo, e que tem relação com a agenda das negociações oficiais da COP, é que as transações voluntárias já existem e o aprendizado da última década ajuda na construção do mecanismo global previsto no Artigo 6 do Acordo de Paris.
O acordo foi firmado em 2015, e é possível que as primeiras negociações comerciais no âmbito da ONU só aconteçam em 2025. O livro de regras foi fechado há dois anos, na COP26, e desde então os negociadores discutem detalhes operacionais.
Um dos temas em jogo em Dubai é justamente se esse sistema global vai admitir a participação dos créditos correspondentes a emissões que foram evitadas – caso do REDD+. Um dos itens do Artigo 6 prevê que projetos privados possam ser vendidos para países que precisam cumprir suas metas nacionais.
O governo brasileiro é um dos que defendem que, das atividades florestais, somente aquelas que removem carbono da atmosfera – ou seja o reflorestamento – sejam elegíveis.
Howard, da Verra, diz que a inclusão ou não do REDD+ no Acordo de Paris não indica a integridade ou a qualidade dos créditos, mas sim os diferentes interesses dos países.
“O processo todo está tomando muito tempo. As certificadoras do mercado voluntário não só já mitigam a mudança do clima como direcionam recursos reais para o mundo em desenvolvimento”, afirma ele.
Ribeiro, da Biofílica, usa um argumento semelhante quando fala de uma eventual desvalorização dos seus créditos caso eles não tenham o carimbo da ONU.
“Os mercados não estão esperando a ONU. Ninguém se entende aqui [falando das negociações]. E quem pode garantir que esses créditos do Artigo 6 vão valer alguma coisa?”
Dentro de casa
Dallan, da Aliança Brasil NBS, diz que espera que o mecanismo da ONU contemple o desmatamento evitado, mas essa não é sua maior preocupação. Uma decisão mais importante será tomada pelo órgão gestor do mercado regulado de carbono brasileiro.
O projeto de lei que estabelece o mecanismo cap and trade para os setores industriais altamente poluentes do país foi aprovado no Senado e agora está em tramitação na Câmara dos Deputados.
O texto deixa para uma fase posterior a definição das metodologias de geração de créditos de carbono aceitas no sistema. Na versão atual do PL, o setor privado não tem participação no comitê decisor, afirma Dallan.
“O que eu digo para o meu cliente se nem o próprio país aceita esse tipo de crédito?”, pergunta ela.
Ribeiro afirma que olhar para os offsets de maneira binária é uma distração perigosa, seja opondo conservação e reflorestamento ou soluções baseadas na natureza às tecnológicas.
“Não é isso ou aquilo. A gente precisa de tudo ao mesmo tempo para ter chance de chegar ao net zero.”