Como o óleo da sua batata frita pode ajudar aviões a poluírem menos

O óleo de cozinha das batatas fritas e coxinhas não é bom para a sua saúde, mas podem ajudar o planeta. Isso porque ele pode se tornar matéria prima para combustível sustentável de aviação (SAF, na sigla em inglês), um setor cada vez mais pressionado para reduzir as emissões de gases de efeito estufa. 

Além do óleo de cozinha, as gorduras bovinas e a ainda pouco conhecida macaúba estão no centro dos projetos em desenvolvimento no Brasil. Mas os desafios para escalar a produção e reduzir os custos ainda são significativos.

Hoje, a aviação responde por apenas 2,5% das emissões globais de gases de efeito estufa, mas o setor enfrenta uma trajetória de crescimento acelerado. A estimativa da Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA, na sigla em inglês) é de que somente 11% da população mundial viaja de avião – no caso dos voos internacionais, o número cai para 4%. Mas a estimativa é de que até 2043 o número de passageiros deve dobrar. 

Assim, como bater a meta de zerar emissões líquidas até 2050? 

O assunto virou até conversa de novela no remake de Vale Tudo, da TV Globo. O personagem Afonso Roitman quer garantir que a companhia aérea da família, a TCA, irá bater a meta. Para a mãe dele, Odete Roitman, 2050 está muito longe. “Não, mãe. É daqui a pouco. Se a gente não fizer nada, a gente vai chegar bem longe de zero”, diz. 

A única alternativa disponível em larga escala, por ora, é o SAF, que representa apenas 0,3% do total de combustíveis consumido pelas aeronaves globalmente. Trata-se de um tecnologia drop-in: pode ser misturada ao querosene convencional, usado nos aviões atuais, sem necessidade de adaptações. Os custos, no entanto, são uma barreira. O preço do SAF chega a ser de três a quatro vezes superior ao do querosene fóssil. E a oferta é limitada.

“Hoje, é um produto que tem muito mais demanda do que oferta”, disse Marcelo Bragança, VP de operações da Vibra, primeira empresa a importar SAF para uso no Brasil, ao Carbono Zero, podcast original do Reset. O lote comprado pela companhia veio da Ásia e passou pela Bélgica antes de desembarcar no Galeão. Hoje, um avião pode decolar com no máximo 50% de SAF – o que na prática não significa muita coisa, já que a produção global é minúscula.

Nos Estados Unidos, o avanço foi puxado por subsídios do pacote climático do governo de Joe Biden. A meta americana é abastecer 10% da frota com SAF até 2030. Mas, com a volta de Donald Trump ao poder e sua política anticlimática, há incerteza sobre a continuidade desses incentivos.

Na Europa, os mandatos obrigatórios já estão em vigor: hoje, 2% do combustível deve ser SAF. A mistura sobe para 6% em 2030, 34% em 2040 e pode chegar a 70% em 2050. No Brasil, a recém-aprovada Lei do Combustível do Futuro estabelece uma meta de redução de emissões, e não uma porcentagem fixa de mistura, para dar conta da complexidade da conta de carbono do SAF – que varia conforme a matéria-prima e a logística envolvida.

O Brasil tem ativos importantes para essa nova fronteira: ampla disponibilidade de biomassa, indústria de biocombustíveis já estruturada e potencial agrícola. O país planta muita cana, soja e milho para fazer etanol e biodiesel. 

A aposta mais ambiciosa vem da Acelen Renováveis, braço do fundo soberano de Abu Dhabi (Mubadala), que planeja investir US$ 3 bilhões para produzir 1 bilhão de litros de SAF por ano a partir da macaúba, fruta nativa da América Latina. O projeto inclui um plantio de 160 mil hectares, com prioridade para fazendas próprias, um centro tecnológico no norte de Minas e uma biorrefinaria na Bahia.

Por não competir com alimentos e crescer em solos degradados, a macaúba atende aos critérios de sustentabilidade exigidos pela União Europeia, onde é proibida a produção de SAF com matérias-primas alimentícias – algo que é frequentemente criticado como uma forma de protecionismo. “Ela já é pronunciada em alemão, inglês e nos Emirados”, brinca Luiz de Mendonça, CEO da Acelen Renováveis. Segundo ele, a planta pode produzir de 7 a 10 vezes mais óleo vegetal por hectare do que a soja. A macaúba não precisa de muita água e floresce em áreas degradadas. 

Outras matérias-primas também ganham espaço. A B&8, uma das grandes produtoras de biodiesel do Brasil, desenvolve no Paraguai o projeto Ômega Green, com tecnologia baseada na rota Refa, que usa gordura animal, óleo vegetal e óleo de cozinha reciclado. “Segue o mesmo princípio da refinaria, como se fosse uma refinaria de petróleo. Tem uma mistura desse material com hidrogênio e catalisador, que é transformado em SAF”, explica Erasmo Batistella, presidente da B&8. 

A demanda alta também valorizou a gordura animal. Em fevereiro, os frigoríficos brasileiros exportaram cada tonelada de sebo a R$1.112 reais. Em março de 2025, as exportações brasileiras de sebo cresceram 180% ante ao mesmo mês de 2024, segundo a consultoria Argus.

Desafio logístico 

O óleo de cozinha é um grande aliado na corrida pelo SAF. Mas, mesmo que a população mundial consumisse coxinhas o suficiente para abastecer todos os aviões do mundo, a logística para coletá-lo e transportá-lo seria um desafio. 

Apenas na Europa, em 2023, os países consumiram oito vezes mais óleo usado do que conseguiram coletar. A Japan Airlines, por exemplo, fez um acordo com uma rede de varejo para conseguir fornecimento de óleo para SAF. Já a China, que é a maior exportadora desse tipo de resíduo, também quer produzir SAF para si mesma. 

Diante das dificuldades de transporte físico, uma alternativa que começa a ser testada é o modelo book-and-claim: o combustível pode ser produzido e usado em um país, mas a redução de emissões pode ser contabilizada por uma empresa de outro – uma espécie de crédito de carbono operacional.

O próprio mercado de carbono será uma peça importante na equação final. Mesmo que o SAF corte até dois terços das emissões dos voos em 2050, o restante terá que ser compensado. Mas os problemas de credibilidade e integridade dos créditos voluntários ainda geram ceticismo. E o mercado regulado para aviação ainda está em formação.

Preços de passagens

As companhias aéreas dizem que não vão conseguir arcar sozinhas com os custos. Algumas, como a Lufthansa e a Virgin Atlantic, já estão repassando os custos do combustível sustentável para os consumidores. 

“Estamos lentamente chegando a 1% de combustíveis sustentáveis de aviação em comparação com o total. Em 2050, vamos precisar de 500 milhões de toneladas. Se não tivermos como pagar por isso, bem, então todos iremos à falência. E isso também será terrível”, disse Marie Owens Thompson, da IATA. 

“Os custos envolvidos são assustadoramente altos em comparação com a lucratividade do setor. Este ano, estamos prevendo uma margem de lucro líquido de 3% para a aviação civil global, obviamente um número baixo.” 

No Brasil, o combustível já responde por 40% dos custos operacionais das aéreas. “O combustível de aviação no Brasil já é o mais caro do mundo. Se a gente aumentar cinco vezes o preço da linha mais cara de operação, o setor aéreo no Brasil, e na América Latina como um todo, não vai aguentar. O consumidor vai preferir ir de ônibus, de carro ou não ir”, resume Filipe Alvarez, gerente de sustentabilidade e governança da Azul. 

Para viabilizar os projetos e pesquisas, o governo brasileiro anunciou linhas de crédito específicas. Um programa do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) tem R$ 6 bilhões para financiar iniciativas em SAF e combustíveis renováveis para transporte marítimo. Só a Acelen já captou R$ 260 milhões para seu centro de pesquisa. 

“Temos que juntar os melhores planos de negócios e pisar no acelerador. Se o projeto for bom, não vai faltar recurso”, disse o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, quando o programa foi anunciado.

O mundo precisa que o SAF avance rápido. Mas para decolar de fato, a indústria vai ter que resolver uma equação difícil: matéria-prima, escala, regulação e preço. Para Erasmo Batistella, da B&8, a transição deve seguir o princípio de quem usa, paga: “Não é justo cobrar a transição de quem só anda de bicicleta ou a pé. Agora é justo fazer a distribuição do custo com quem anda de avião, de carro, quem transporta com caminhão e navio”.