A prefeitura de Petrópolis sabia havia pelo menos cinco anos quais áreas da cidade eram mais vulneráveis a um temporal violento como o da última terça-feira.
Nada foi feito. Até o momento, 117 mortes estão confirmadas, e 116 pessoas seguem desaparecidas. A lista de tragédias brasileiras anunciadas ficou ainda mais longa.
Enchentes são o desastre natural mais comum do planeta. De acordo com um levantamento da ONU, elas responderam por 43% dos eventos registrados entre 1995 e 2015 e afetaram 2,3 bilhões de pessoas.
O problema só vai se agravar. Até 2030, mais da metade dos 8,6 bilhões de habitantes do planeta sofrerá algum tipo de impacto por causa das cheias, segundo uma projeção do World Resources Institute.
A mudança climática já começou. No Brasil e no mundo, cidades estão elaborando planos detalhados para entender e se preparar para um conjunto de ameaças que incluem não só intempéries, mas consequências de saúde pública, impactos na biodiversidade e nas economias locais.
Esses documentos, conhecidos como planos de ação climática, são longos, técnicos e abrangentes. Os cenários se estendem por décadas no futuro. Eles são baseados na melhor ciência disponível hoje, mas não são definitivos nem têm todas as respostas.
Das 97 cidades do mundo que integram um grupo chamado C40, 61 já terminaram a primeira versão de seus planos. Os demais devem estar concluídos este ano.
Quatro capitais brasileiras – Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador – fazem parte da organização, um clube de troca de boas práticas no enfrentamento da emergência climática.
João Pessoa pretende concluir seu plano até meados do ano que vem.
Recife, uma das pioneiras no Brasil, já trabalha numa revisão de cinco anos da versão 1.0, com a intenção de propor medidas mais práticas.
Além das capitais, cidades como Santos, Sorocaba, São Bernardo do Campo (SP) e Betim (MG) já traçaram uma primeira estratégia.
Como mostra a sequência de tragédias causadas pela chuva nestes dois primeiros meses do ano, é uma questão urgente – e a palavra-chave é “ação”.
Governança
Salvador divulgou seu Plano de Mitigação e Adaptação às Mudanças do Clima em novembro de 2020.
Muito antes do início da elaboração do documento, porém, a cidade já lidava com as consequências das tempestades. Uma forte chuva em meados de abril de 2015 causou deslizamentos de terra que deixaram 15 mortos.
A cidade reestruturou a Defesa Civil. Foi criado um sistema de monitoramento com estações pluviométricas e meteorológicas.
Sirenes avisam a população caso haja risco iminente, as rotas de evacuação até os abrigos mais próximos são amplamente divulgadas.
Em 2020, houve chuvas ainda mais fortes, mas sem perda de vidas. “Foi essencialmente uma questão de governança”, diz Ivan Euler, diretor de resiliência da secretaria de Sustentabilidade e Resiliência de Salvador. “Os órgãos se conversam, todo mundo sabe o que fazer em caso de emergência.”
O plano inclui metas concretas para lidar com o problema dos deslizamentos, entre eles reduzir de 45% para 30% a população que vive em áreas de risco até 2049 (quando a cidade comemora 500 anos).
Isso significa que, na melhor das hipóteses, um terço dos soteropolitanos ainda viveriam sob algum tipo de ameaça.
Como é virtualmente impossível realocar tanta gente, a solução é adotar medidas que só podem ser descritas como “paliativas”.
Algumas parecem triviais, como orientar a população a não jogar lixo nem plantar bananeiras em encostas (elas aumentam a retenção de água no solo).
Outra ideia já colocada em prática e que não envolve obras de grande complexidade nem grandes orçamentos é a instalação de canaletas ao lado das escadas usadas pelos moradores dos morros, para tentar direcionar a água da chuva.
“Não consigo tirar todo mundo [das áreas de risco]”, diz Daniela Guariero, fundadora da Takoa Consultoria e uma das coordenadoras do plano de Salvador. “Essas ações de reurbanização e requalificação ajudam a minimizar o problema.”
Mitigar e adaptar
Todo plano de ação climática decorre do aquecimento global e, portanto, começa com a realização de um inventário das emissões de gases de efeito estufa da cidade ou região.
O passo seguinte é delinear como o município ou Estado vão contribuir para evitar o lançamento de mais CO2 na atmosfera.
Este é um dos princípios fundamentais do combate à mudança climática: mitigar os efeitos da atividade humana e, ao mesmo tempo, adaptar-se a um planeta em transformação.
Mas será que em países como Brasil, em que tragédias como a de Petrópolis se repetem há décadas, a ênfase não deveria ser na adaptação?
“As duas coisas têm de andar juntas, ou então vamos ficar para sempre enxugando gelo”, diz Fernanda Barbosa, gerente de implementação de ações climáticas do C40 no Brasil.
“Você pode construir um edifício com um reservatório para água da chuva. Mas e as emissões associadas à construção?”
Sérgio Margulis, que foi o economista-chefe da área de ambiente do Banco Mundial e recentemente lançou o livro online “Mudança do Clima: tudo o que você queria e não queria saber”, pensa diferente.
“Defendo que a adaptação deva ser a prioridade”, afirma Margulis. “Mesmo porque a mitigação é uma agenda nacional. Pense na política energética. Ela é responsabilidade do governo federal. Agora, quem é que vai pensar na sua cidade se não for a prefeitura?”
Pense globalmente…
Existe um esforço mundial em curso para encontrar soluções tecnológicas para a descarbonização, argumenta Margulis, mas as necessidades de adaptação serão sempre particulares.
São Bernardo do Campo, na região metropolitana de São Paulo, começou uma obra de quase R$ 240 milhões para criar o maior piscinão do Estado.
Quando estiver concluído, o reservatório terá capacidade para 900 mil metros cúbicos de água. A região tem problemas crônicos de alagamentos – a ponto de algumas empresas criarem “comportas” para evitar a entrada da água das inundações.
Na capital paulista, uma das soluções encontradas para lidar com a impermeabilidade do solo foi a instalação de “jardins de chuva”.
São canteiros plantados que cumprem duas funções básicas. A primeira é absorver parte da água da chuva ou, pelo menos, retardar o escorrimento para que o sistema de drenagem dê conta do volume. A outra é embelezar a cidade.
Recife já instalou mais de 300 geomantas em áreas de encosta onde há riscos de deslizamentos. Compostas de fibras sintéticas e recobertas por argamassa, as geomantas funcionam como uma capa protetora para impedir que a terra fique encharcada e desmorone sob seu próprio peso.
Essa técnica é utilizada para evitar tragédias em bairros pobres. A vulnerabilidade ambiental costuma andar de mãos dadas com a vulnerabilidade socioeconômica, como observa Melina Amoni, gerente de risco climático da consultoria Way Carbon.
Amoni participou da elaboração de diversos planos de ação climática de cidades brasileiras. Uma característica comum a todas elas é o crescimento desordenado da malha urbana.
Mudança na gestão
Não há documento nem orçamento capaz de solucionar o crescimento caótico – e perigoso – das cidades brasileiras. Mas os planos de ação climática podem introduzir algumas ideias novas e potencialmente revolucionárias na gestão pública.
A primeira é a cooperação. Quase a totalidade das ações recomendadas, seja para mitigação ou adaptação, envolve diversas secretarias e órgãos municipais, com eventual participação do setor privado.
Essa visão horizontal não é praxe na administração pública – e ela depende da orientação que vem de cima. “O prefeito querendo, todo mundo trabalha junto”, diz Fernanda Barbosa, do C40. “A liderança é essencial.”
Outra luta da organização é o que Barbosa chama de “mainstreaming” da preocupação climática: em vez de um tema à parte, ela deveria ser levada em conta em todas as decisões tomadas pelos governos locais.
Questão de tamanho
As quase cem cidades que integram o C40 são grandes. Juntas, elas representam quase um quarto da economia global e têm 700 milhões de habitantes.
A elaboração de estratégias regionais para lidar com a emergência do clima custa caro em recursos financeiros e intelectuais.
Nova York desenvolveu um modelo sofisticado de software alimentado por dados pluviométricos, níveis do mar e do rio e informações do sistema de drenagem municipal para estabelecer quais áreas estão mais sujeitas a uma tempestade extrema.
É um tipo de avaliação fora do alcance de cidades como Petrópolis, ou as do Sul da Bahia atingidas por enchentes em janeiro.
Mas a urgência, em uma das cidades mais ricas do mundo ou no interior baiano, é a mesma.
Barbosa diz que a esperança é que as metrópoles pioneiras possam servir para disseminar as ideias em seus respectivos países.
Experiências internacionais, especialmente no caso de grandes cidades, também podem ser aproveitadas.
Roterdã, na Holanda, criou uma espécie de piscinão na região central da cidade. O espaço fica alguns metros abaixo do nível da rua e é acessível por meio de degraus.
Quando o tempo está seco, a “Praça da Água” funciona como equipamento de lazer urbano, com quadras e espaço para sentar.
Quando chove muito, a área funciona como um reservatório de emergência para desafogar o sistema de drenagem da cidade. Inaugurado em 2014, o parque foi a primeira iniciativa para transformar a cidade portuária numa “esponja”.
Cada um, cada um
No fim das contas, adaptação significa desenvolvimento, afirma Margulis. Ele menciona dois países muito diferentes, mas ambos abaixo do nível do mar.
“Ninguém está preocupado com o que vai acontecer com a Holanda com a elevação do nível do mar. Mas todo mundo fica apavorado com o que pode acontecer em Bangladesh.”
“Não é que Bangladesh não queira se adaptar ou não tenha consciência do problema. Mas eles têm 300 coisas na agenda de desenvolvimento, uma das quais é a resiliência à mudança do clima.”
Seguindo a mesma lógica, é possível – talvez provável – que uma cidade como São Paulo tenha um parque/piscinão como o de Roterdã. Mas como ficam as pessoas que moram no morro?