PARIS – A um ano de sediar a Olimpíada de 2024, Paris está liderando um dos esforços mais ambiciosos do mundo para afastar as pessoas dos carros. Adotou o conceito de “cidade de 15 minutos”, redesenhando transporte, habitação, empregos e espaço público para que os residentes possam viver sem deslocamentos longos e poluentes.
Quando os jogos olímpicos começarem, o mundo terá a oportunidade de julgar as mudanças da segunda cidade mais congestionada da Europa depois de Londres, segundo a empresa de análises Inrix. Onde hoje existem obras rodoviárias, haverá 60 km de ciclovias, permitindo que os visitantes pedalem até cada local de competição.
O desejo do atual governo municipal beira a utopia ao se pensar nas capitais brasileiras: pretende que o carro e qualquer meio de transporte motorizado particular ocupe um espaço residual na cidade.
O uso das vias públicas por meios de transporte privados em uma cidade tão densa é considerado uma anomalia e a ideia é que sejam literalmente enterrados, uma vez que praticamente só estarão disponíveis vagas subterrâneas para estacionamento.
A bicicleta não é a única que substituirá os veículos. Ruas desnecessárias (por onde não circularão mais carros) e vagas de estacionamento serão transformadas em parques e jardins, compondo uma série de corredores verdes e permitindo que a cidade continue sendo habitada nos próximos anos, quando as ondas de calor devem se tornar ainda mais intensas e frequentes.
Todas essas medidas estão detalhadas no Plano Climático de Paris, um mapa de ação decorrente dos compromissos assumidos pela França na COP21, a conferência internacional do clima de 2015.
Depois de consulta pública e votação no conselho municipal, a versão final foi adotada em 2018. Entre os mais de 500 projetos e metas estabelecidas para até 2050, os principais giram em torno do propósito de fazer da capital francesa uma cidade neutra em emissões de carbono.
Sustentam essa meta objetivos como zerar as emissões de gases de efeito estufa na região central de Paris, usar energia 100% renovável, fazer uma transição climática socialmente justa, eliminar os transportes a diesel até 2024 e a gasolina até 2030 e tornar Paris 100% pedalável.
Paris não está sozinha nessa batalha. Oslo, capital da Noruega, proíbe desde janeiro de 2018 os automóveis movidos a diesel no centro da cidade e Amsterdam, na Holanda, prevê até 2030 a exclusão de veículos a diesel e gasolina.
Ainda faltam 4 anos para o fim do segundo mandato da prefeita Anne Hidalgo, do Partido Socialista, a primeira mulher a ocupar o cargo, e a palavra de ordem é acelerar. De preferência a pé ou de bicicleta.
Um plano de investimentos para o período 2023-2026 promete 1,75 bilhão de euros – além dos mais de 10 bilhões anuais do orçamento – com foco em soluções para as crises climática, social, democrática e energética.
Inspirada por um novo estilo de vida adotado durante e após a crise da covid e aproveitando-se da preparação da cidade para os Jogos Olímpicos de 2024, a prefeitura pretende deixar, além do aspecto visível das reformas urbanas, o que chama de herança imaterial: a consciência de que um outro modelo de Olimpíada e um novo jeito de se transportar são possíveis.
Politicamente, a conta tem sido alta. Hidalgo e seu plano são muito criticados, especialmente pela direita, e ela é acusada de polarizar a opinião pública e de dificultar a convivência entre motoristas e parisienses que não têm carro. Políticos e setor privado temem que os congestionamentos e a poluição apenas mudem de lugar e se concentrem na fronteira das zonas de proibição, comerciantes temem redução no fluxo de consumidores e problemas com a logística de entregas e moradores da periferia quebram a cabeça para gastar menos tempo no trajeto ao trabalho.
A prefeita, porém, é uma das poucas representantes do poder público a pedir aos cidadãos que aceitem os inconvenientes do combate à crise climática.
Para a Olimpíada, a ambição é reduzir em 55% as emissões de carbono em relação aos jogos de Londres, de 2012. Na intenção de cumpri-la, serão implantadas ferramentas de mensuração e de acompanhamento do impacto de carbono em cada etapa dos Jogos de Paris 2024. Em paralelo, haverá uma proposta de compensação das emissões que não puderem ser evitadas.
Uma estrela: a bicicleta
No eixo da mobilidade, marca registrada da prefeita franco-espanhola, as bicicletas são protagonistas. Uma nova rede de 60 km de ciclovias vai atravessar todos os bairros de Paris, conhecidos como arrondissements, e conectará todos os espaços de competição, a partir de um hub principal na Praça da Concórdia.
Dez mil vagas de estacionamento de bicicletas serão instaladas e três mil novas Vélib , as bicicletas nas cores azul ou verde de uso compartilhado, serão disponibilizadas. Em 2021, Paris já contabilizava mais de mil quilômetros de vias aptas ao trânsito de bicicletas, entre ciclovias e vias adaptadas e compartilhadas com carros ou pedestres.
Além de implantar o trânsito sem poluição na cidade, a prefeitura quer trazer o conceito de Olimpíadas compactas: delegações, atletas e equipes vão se locomover o mínimo necessário. Dos 32 esportes olímpicos, 24 deles terão treinos e competições acontecendo em um raio de até 10 km da Vila Olímpica, que será construída em Seine-Saint-Denis, na grande Paris, departamento de aproximadamente 1,5 milhão de habitantes, que fica a nordeste da cidade.
Ali estarão concentrados 80% dos investimentos dos Jogos Olímpicos e as duas maiores estruturas do evento – a Vila Olímpica e o Centro Aquático. Com isso, 85% dos atletas estarão a menos de 30 minutos dos locais de competição.
Essa região tem uma rede de 130 km de ciclovias e promete acrescentar mais 25 km até 2024. O objetivo é facilitar os trajetos do dia a dia de seus moradores, o acesso aos jogos olímpicos e também a conexão entre Seine-Saint-Denis e Paris. Está prevista ainda a construção de 3 mil vagas definitivas de estacionamento de bicicletas em torno do estádio Stade de France.
A redução das emissões de carbono não se restringe às medidas de mobilidade.
Outro grande eixo é justamente o da construção civil. Por isso, os jogos acontecerão em dois setores principais: no centro de Paris, com 13 locais para competições, e em Seine-Saint-Denis, com seis. A ideia é que 95% das infraestruturas seja existente ou temporária, em espaços icônicos da cidade. Ou seja, nada de deixar como legado grandes elefantes brancos.
O único equipamento urbano que será construído dentro de Paris para as Olimpíadas será a Arena, em Porte de la Chapelle, norte da cidade, no 18o arrondissement. Essa obra envolve uma transformação mais ampla em toda a região: aumento da área verde, com dois novos parques, e equipamentos públicos novos ou reformados, entre eles cinco creches e escolas, um conservatório, mais de 3 mil residências e ciclovias. A superfície ocupada pelos carros cairá de 45% para 25%, com a redução de pistas em duas vias principais.
Segundo a prefeitura, os jogos apenas aceleraram a execução de um projeto que é estudado há muitos anos para atender às necessidades dos moradores do bairro, visando prepará-lo às necessidades que a crise climática impõe.
A “cidade de 15 minutos”
O plano de investimentos 2023-2026 pretende também aproximar Paris do conceito urbano de “cidade de 15 minutos”, em que seis necessidades básicas do cidadão podem ser atendidas mediante um deslocamento de no máximo 15 minutos, a pé ou de bicicleta. São elas: moradia, trabalho, cuidados médicos, compras essenciais, educação e lazer cultural e esportivo.
Essa noção foi criada por volta dos anos 2000, mas a covid e a aceleração da crise climática trouxeram novamente a ideia à tona. O intuito é criar condições para que a população abra mão dos motores, seja de automóveis, seja de qualquer outro meio de transporte público, para viver o dia-a-dia.
A necessidade de distanciamento social e o impedimento de se deslocar a uma distância superior a 1 km de casa, durante a pandemia, permitiu que uma série de medidas fossem implementadas discretamente.
Hoje há mais ciclofaixas temporárias e permanentes por toda a cidade e vias com acesso restrito para pedestres com cronograma ampliado. As ruas de 230 escolas primárias foram adaptadas para a circulação exclusiva de pedestres, com o objetivo de reduzir a poluição do ar e contribuir para a segurança das crianças no trajeto de casa até o estabelecimento de ensino. Mais de 60 mil vagas de estacionamento foram eliminadas. A velocidade máxima permitida para automóveis é de 30 km/h em quase toda a cidade. Excepcionalmente, chega a 50 km/h.
O projeto ainda exige uma série de adaptações para que os espaços públicos se tornem multifuncionais. Tudo deve partir da escola, que se transformará na “capital” dos bairros. Reformadas e com mais espaços verdes, elas passarão a abrir aos fins de semana e fora dos horários de aula para atividades esportivas e culturais. Estacionamentos podem virar garagem de bicicletas.
A aposta na proximidade também tem a expectativa de criar uma rede de solidariedade entre vizinhos de um mesmo bairro, à medida em que passam a se encontrar com mais frequência e a se conhecer, humanizando, de certa forma, cidades de alta densidade demográfica. Melbourne, na Austrália, e Shanghai, na China, fazem referência a esses círculos de vida comunitária “em 20 minutos” em seus planos diretores.